
Por Milton Almeida, do ATUAL
MANAUS – Dois anos após os ataques golpistas do 8 de janeiro de 2023, em Brasília, analistas de ciências sociais e política opinam que, do ponto de vista institucional, a tentativa de golpe de Estado foi “estancada”, mas a ameaça à democracia permanece porque o ímpeto, ou as condições políticas que levaram àquele momento, sobreviveram.
“A democracia do Brasil precisa de zelo, de vigilância por parte daqueles que nela acreditam”, diz Heloisa Correa, doutora em Ciências Sociais e professora da Ufam (Universidade Federal do Amazonas).
Para o sociólogo Marcelo Seráfico, doutor em Sociologia e também professor da Ufam, o que aconteceu há dois anos, em pleno domingo, “não foi um fato político isolado”, mas decorreu de um “processo de progressiva deterioração” de dois aspectos da vida política nacional e social.
“De um lado, uma deterioração das condições de vida de parte significativa da classe média, que vem perdendo principalmente status dentro da sociedade brasileira e, em segundo lugar, de precarização das condições de vida da maioria dos trabalhadores. Esses dois aspectos combinados redundam na ascensão de uma perspectiva reacionária, cuja base é uma idealização do passado, quer dizer, é uma forma de olhar para o passado e inventar nele uma sociedade boa. É como se as pessoas olhassem para o período da ditadura militar brasileira, de 64 a 85 e vissem naquele momento aspectos positivos e quisessem voltar”, analisa Seráfico.
Segundo o professor, a idealização do passado, de 64 a 85, com uma narrativa positiva, de prosperidade social e econômica, “quase como um catecismo”, reproduzido nas redes sociais, leva a atos como o que aconteceu no dia 8 de janeiro de 2023.
“Setores de extrema direita idealizam esse passado. Mas por que esse movimento ganha essa força? Porque não temos um contraponto, por exemplo, de um pensamento crítico, que pudéssemos dizer progressista ou de esquerda, que se revele muito diferente, no que diz respeito às propostas políticas para a sociedade em que vivemos, de experimentos que foram feitos no passado. Então, veja essa ausência de contraponto político-ideológico que serve também como uma espécie de vácuo que é ocupado pela extrema direita”, diz Seráfico.
“Parte da sociedade brasileira continua acreditando que o exercício político e a discussão sobre formas de desenvolvimento e a economia é para poucos”, complementa Heloisa.
Conforme Marcelo Seráfico, a forma de organizar o estado nacional tem a ver com a ideia de república. “O estado nacional corresponde, no caso do Brasil, a uma forma republicana de constituição da política, da vida política. Só que essa visão institucional não é suficiente porque essa institucionalização corresponde também a determinadas pretensões de ordem econômica e social”, diz o sociólogo.
“A democracia, para que se realize plenamente, significa não apenas o acesso, digamos, à participação na vida política do país, mas também o acesso ao cumprimento de direitos declarados, como aqueles direitos que fundam a vida social no país. Esses direitos têm a ver com saúde, educação, saneamento, renda… Direitos sociais, condições mínimas para exercer a cidadania, e a cidadania é entendida como uma espécie de personalidade política que caracteriza a vida em uma democracia”, acrescenta Seráfico.
“Quando a gente vai para esse aspecto, começamos a entender que existem algumas contradições. Por exemplo, entre os direitos sociais e os direitos econômicos dentro da Constituição. Os direitos econômicos, que têm a ver, no caso do nosso país, predominantemente com o direito à propriedade privada, do modo como se organiza a nossa sociedade, acabam privilegiando as pessoas que já são dotadas de propriedade privada”, complementa.
Ultraliberalismo
Sobre apoio de parte da Polícia Militar e alguns generais do Exército à tentativa de golpe, os analistas sociais afirmam que as instituições de segurança pública aderiram a um “pensamento reacionário, ultraliberal” e assumiram atitudes e comportamentos causados por desejos e interesses pessoais e não por políticas de segurança pública.
“Isso nos leva a algo muito sério. As práticas extremamente violentas, que caracterizam esses setores, com a ascensão da extrema direita a posições importantíssimas no Estado brasileiro, foram quase que legitimadas, não foram legalizadas… Eram assumidas como aceitáveis, ainda que ilegais. Um papel que é de interesse público, esses grupos passaram a cumprir papéis vinculados à sua própria ideologia”, diz Seráfico.
“A identificação de participantes nos atos que se seguiram pós-eleição, identificados como pertencentes a instituições do Estado em suas três esferas, essas instituições passaram a ser percebidas pela sociedade brasileira como ‘ninchos’ e pôs em vulnerabilidade a missão das mesmas, que passa pela defesa do Estado…”, endossa Heloisa.
Demonização do pensamento
Para os especialistas, a tentativa de golpe não significou o fortalecimento do Judiciário, com o enfrentamento dos golpistas pelo STF (Supremo Tribunal Federal), mas a “revisão do que foi a liberação da Lava Jato” e a “revisão de pontos de vista de ministros do judiciário”.
Para os analistas, o STF cumpriu eu papel e “o cumprimento desse papel implicou inclusive a revisão de decisões” que, anteriormente, haviam sido tomadas.
Eles opinam que desqualificar não apenas pessoas do Judiciário, mas também do Executivo e Legislativo, faz parte do processo golpista.
“A Operação Lava Jato e o modo através do qual os meios de comunicação de massa aderiram a ela tem a ver com uma espécie de demonização da esquerda ou de demonização de pensamentos que são ou de interpretações que são críticas ou relativamente críticas à realidade das sociedades capitalistas. Quer dizer, você tem um pensamento que está inspirado no que a gente poderia chamar de social democracia, há outros vinculados ao socialismo, mas essas perspectivas foram demonizadas pela mesma comunicação de massa, utilizando-se para isso de informações muitas delas mentirosas”, diz Marcelo Seráfico.
Votantes e votados
Os analistas consultados opinam que o Congresso “não foi contaminado”, mas reconhecem que os escolhidos para as câmaras municipais, estaduais e federais, foram eleitos por pessoas convencidas de que a solução está no passado.
“O que é mais grave, é que a eleição desses sujeitos, que estão em posições-chave de elaboração de leis, pode, em alguns casos, levar à reversão da democracia por dentro da Democracia. Quer dizer, esses sujeitos passam a tentar produzir leis que rejeitam aquilo que a própria Constituição determina como sendo um dos objetivos do país, da nação. Daí vão aparecer conflitos, e não equilíbrio, entre Judiciário e Legislativo”, diz Seráfico.
“O problema é extremamente delicado. Estão instigando a revogação, quase, da Constituição, por dentro da própria estrutura do Estado brasileiro. A lição que fica é que nós devemos ficar atentos e mobilizados, para evitar o avanço desses setores, cujo fim é instaurar, na sociedade brasileira, uma organização da sociedade brasileira, politicamente autoritária, através da implantação de uma ditadura, seja ela civil, seja ela militar, seja civil-militar, e a necessidade de entendermos que a democracia não se esgota apenas como um sistema político”, afirma o sociólogo.