Ao longo da concessão privada dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário em Manaus é possível identificar uma relação um tanto sombria entre o poder público (prefeitura municipal de Manaus) e o poder privado (Águas do Amazonas, Manaus Ambiental e Águas de Manaus), onde há a adoção de medidas que ora beneficiam um, ora outro, mas a população continua usufruindo dos piores serviços do Brasil.
Esta relação obscura já pode ser percebida no processo de privatização, no ano 2000. Os documentos e informações da época mostram que o valor da antiga Manaus Saneamento (subsidiária da estatal Cosama) girava em torno de R$ 486 milhões de reais, mas foi colocada à venda por um preço mínimo de R$ 183 milhões de reais, deflagrando uma absurda desvalorização do patrimônio público, construído a duras penas pela população manauense. A empresa Lyonnaise des Eaux (grupo francês Suez) comprou a subsidiária por uma bagatela de R$ 193 milhões de reais. Segundo o então Governador Amazonino Mendes, este dinheiro seria empregado para financiar obras de saneamento no interior do Estado, mas na verdade o montante foi usado para pagar uma dívida com o grupo Paranapanema, que tinha como sócio Samueal Hanan, vice-Governador do Estado na época. Samuel foi o principal articulador do processo de privatização da empresa estatal. Nada de coincidência. Tudo planejado!
Durante o período de concessão, é possível averiguar inúmeros episódios que evidenciam esta relação obscura público-privado, mas o Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJAM) trouxe à tona uma parte desta zona sombria em 06 de fevereiro de 2015. Provocado pelo Ministério Público do Estado do Amazonas, o TJ-AM determinou em sentença judicial (Processo nº 0026120-13.2010.8.04.0012), a anulação da cláusula 3ª do contrato de concessão, segundo a qual o poder público pode contribuir, inclusive financeiramente, com a concessionária na realização dos serviços a ela concedidos, facultando o escoamento de recursos públicos em benefício da empresa. Esta cláusula configura a privatização como um ótimo negócio para a empresa, pois as obras necessárias para a ampliação dos sistemas de água e esgoto, ao invés de serem custeadas pela concessionária privada, podem ser financiadas pelos cofres públicos, cujo contribuinte é a população manauense.
Para o Tribunal de Justiça, esta cláusula contrapõe-se ao núcleo básico de uma concessão e à sua finalidade essencial, que é “desafogar” o poder público. Segundo o TJAM, é necessário que a concessionária use seus meios próprios para arcar com as despesas do negócio e assuma os riscos das atividades que irá desenvolver. Se a transferência da gestão dos serviços públicos para a iniciativa (privatização) é justificada como sendo uma forma de aliviar as despesas do Estado, então é muito estranho que o Estado continue investindo dinheiro público nos serviços depois de eles serem privatizados. Logicamente, esta prática beneficia à empresa, pois diante da obrigação de investir na melhoria dos serviços de água e esgoto, ela pode optar por não usar os próprios recursos, mas recorrer aos cofres públicos com o apoio da prefeitura municipal. Diante destas circunstâncias, o Poder Judiciário vislumbra que nos encontramos diante de uma “concessão maquiada”.
Esta prática tem sido bastante usada durante as últimas duas décadas de privatização, mas o caso mais emblemático talvez tenha sido a construção da estação Ponta das Lajes para atender o abastecimento de água das zonas norte e leste de Manaus. Esta obra, iniciada em 2008 e concluída em 2010, foi custeada com recursos públicos (esferas federal e estadual) e transferida, gratuitamente, para a empresa privada, que ficou somente com a incumbência de operar o sistema e lucrar com as tarifas cobradas à população. Trata-se de um montante de R$ 368 milhões de reais, constituindo uma dívida que até hoje o povo manaura paga sem ter consciência. A privatização está sendo um grande presente para a empresa. E que presente…
A privatização dos serviços de água e esgoto em Manaus, que transferiu para a iniciativa privada a administração destes serviços, minou a possibilidade de se construir uma gestão participativa voltada para o atendimento das populações mais pobres. Mas esta privatização também indica que o poder público está submetido aos interesses do poder privado, dispondo do patrimônio público para manter os lucros da empresa. Neste sentido, tem-se o poder público vagando sob a órbita do poder privado ou capturado pelo poder econômico em detrimento das necessidades mais básicas da população.
Milton Santos tinha razão: as privatizações são a mostra de que o capital se tornou devorante, guloso ao extremo, exigindo sempre mais, querendo tudo. Para este geógrafo, nas privatizações caricatas, como no caso das brasileiras, o Estado financia as empresas estrangeiras candidatas à compra do capital social nacional. Não é que o Estado se ausente ou se torne menor. Ele apenas se omite quanto ao interesse das populações e se torna mais forte, mais ágil, mais presente, ao serviço da economia dominante.
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