A importância da água para a vida é inegável. Esta essencialidade da água pode ser percebida sob diversas formas. A Encíclica Laudato Sí, do Papa Francisco, frisa que “a água potável e limpa constitui uma questão de primordial importância, porque é indispensável para a vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos” (nº 28). A Encíclica evidencia também a importância da água para a sociedade, salientando que “as fontes de água doce fornecem os setores sanitários, agropecuários e industriais”.
O problema da falta de água vem se tornando cada vez mais preocupante, tanto nos grandes centros urbanos quanto nas áreas rurais, colocando em risco as vidas de milhares de pessoas residentes nestas localidades. Este problema tem gerado conflitos em torno do controle dos mananciais hídricos no mundo inteiro, configurando cenários críticos, onde predomina a escassez e a baixa qualidade da água. Diante disso, para manter os seus rendimentos, poderosos agentes econômicos (corporações multinacionais e organismos financeiros internacionais) buscam controlar este bem essencial, disseminando a política de privatização ao longo do planeta. Nesse sentido, a Amazônia constitui uma área estratégica devido à grande presença deste bem no seu território.
A cidade de Manaus já vive os conflitos provocados pela apropriação empresarial da água desde julho de 2000, quando o governo de plantão, cooptado pelos interesses do capital, transferiu os serviços de água e esgoto da cidade para a multinacional Lyonnaise des Eaux. As duas décadas de privatização são marcadas por inúmeras contradições, forçando repetidas substituições do gestor privado (Lyonnaise des Eaux, Grupo Solvi, Grupo Águas do Brasil e Aegea Saneamento), sendo que a promessa de universalização dos serviços ainda não se concretizou até hoje. A cidade possui um total de 228.889 pessoas sem acesso à água potável e um contingente de 1.869.202 pessoas sem os serviços de esgotamento sanitário (SNIS 2017). A qualidade dos serviços tem sido alvo de críticas, sobretudo nas periferias da cidade.
Esta situação afeta de modo especial as populações mais pobres. Sendo impedidos de acessar à água potável e limpa, estes setores sociais são obrigados a recorrer à água de qualidade duvidosa, colocando em risco as próprias vidas. É de conhecimento geral que entre os mais pobres, são frequentes as doenças relacionadas com a água, incluindo as causadas por microrganismos e substâncias químicas. A diarreia e a cólera, devidas a serviços de higiene e reservas de água inadequadas, constituem um fator significativo de sofrimento e mortalidade infantil (Laudato Si, nº 29).
Dessa forma, é possível notar a forte relação entre o acesso à água potável e a saúde pública. Trata-se de uma estreita relação que deve ser considerada ao se escolher o modelo de gestão hídrica a ser adotado no processo de abastecimento. O modelo de gestão privada não constitui o mais adequado, pois a cobrança de tarifas elevadas impede o acesso das pessoas economicamente mais vulneráveis a este bem essencial e insubstituível, promovendo sofrimentos e humilhações inaceitáveis. Além disso, enquanto estes setores sociais são excluídos do abastecimento de água ou têm seu uso limitado, as empresas privadas procuram estimular o consumo entre os que podem pagar a fim de obter mais lucros, não se comprometendo com a preservação dos mananciais.
Sob o modelo privado, Manaus amarga a 98ª posição no ranking de desempenho dos serviços de água e esgoto entre as 100 maiores cidades do Brasil (Instituto TrataBrasil). Tal posição exerce lastimosa influência na situação da saúde pública de Manaus. De fato, o Datasus/2017 (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde) informa que na capital amazonense 1.899 pessoas são internadas por ano devido a doenças de veiculação hídrica, desembocando na morte de 34 delas. Não precisa explicar que estas pessoas pertencem às classes mais pobres, que sofrem com a falta de água potável e saneamento básico na cidade.
Nesse sentido é de grande importância que o Fórum das Águas de Manaus, organização da sociedade civil que discute o problema do abastecimento de água na cidade, tenha sido eleito pela população para compor o Conselho Estadual de Saúde, representando as entidades do Meio Ambiente. Trata-se do reconhecimento dos manauenses de que há uma estreita relação entre água e saúde pública.
A partir desta instância é possível expor de forma mais evidente para o conjunto da sociedade os conflitos e contradições entre a ânsia pelo lucro e a prestação de serviços essenciais para a população. Ao longo do período de privatização dos serviços de água e esgoto em Manaus nota-se a existência de duas lógicas incompatíveis. A lógica do mercado, que se aproveita de uma necessidade básica para gerar lucros, visando beneficiar um pequeno grupo de empresários e investidores estrangeiros e, a lógica do bem comum, que leva em consideração as necessidades básicas do conjunto da sociedade, ansiando por tornar universal o acesso à água potável, através de gestões participativas.
O Fórum das Águas de Manaus concretiza um pouco deste ideal de democracia na medida em que terá a oportunidade de apresentar ao Conselho Estadual de Saúde os desafios da universalização dos serviços de água e esgoto, denunciando a precariedade dos serviços privados e instigando a sociedade a buscar formas mais justas e sustentáveis de usufruir dos bens comuns imprescindíveis para a vida, como é o caso da água potável e saneamento.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial do AMAZONAS ATUAL.