A vida merece ser preservada, incondicionalmente. Mas ultimamente venho observando o comportamento humano dos brasileiros diante da violência, nesses tempos de redes sociais. Salvo algumas exceções, a morte de um humano não gera a menor reação. Estamos apáticos diante dos fatos que nos afetam ou afetam outros seres humanos. Pratique-se qualquer violência contra um animal de estimação, e a reação é bem distinta: levanta-se o mundo contra o agressor. Que sociedade é esta em que a vida de um animal parece ter maior importância que a de um humano? Não que eu defenda o contrário. A existência de um e de outro tem ou deveria ter o mesmo valor.
Não defendo nem apoio quem maltrata animais, pelo contrário; defendo, sim, o cumprimento das leis de proteção aos animais. A comparação é apenas ilustrativa de uma perigosa conduta e de um sentimento que começa se materializar nas ruas do país. É espantoso o valor que se demonstra à vida humana. O caso da mulher espancada até a morte em São Paulo, no Guarujá, por uma população insensata e insensível ilustra bem o que quero dizer. As imagens divulgadas em vídeo são estarrecedoras. A mulher, desfalecida, é jogada como um boneco de pano, atacada apauladas e chutes, arrastada pelas ruas como um farrapo diante de umas dezenas de pessoas gritando “vagabunda”.
Não consigo imaginar que tamanha crueldade fosse praticada contra um animal, qualquer que seja, por qualquer ato violento que tivesse cometido contra outro animal ou um ser humano. Haveria, certamente, alguma reação de defesa de um humano, mesmo que fosse no estágio em que o animal já estivesse agonizando. Com a mulher do Guarujá não houve um pedido de compaixão, uma voz destoante das vozes que gritavam contra ela.
Hannah Arendt, no livro “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”, afirma que “o mal não é uma categoria ontológica, não é natureza, nem metafísica. É político e histórico: é produzido por homens e se manifesta apenas onde encontra espaço institucional para isso – em razão de uma escolha política”. Para a filósofa de origem alemã, “a trivialização da violência corresponde ao vazio do pensamento, onde a banalidade do mal se instala”.
No Brasil, há algum tempo, vem-se pavimentando este “espaço institucional” da violência mencionado por Arendt. Vivemos a cultura da violência na sua fase mais crítica. Desde a instalação da ditadura militar, há 50 anos (para ficarmos em um exemplo recente), o Estado imprime a violência contra a população brasileira. Tal prática não foi sepultada com o fim do regime de exceção. Como bem relata o jornalista Caco Barcelos, no seu “Rota 66 – A história d polícia que mata”, escrito nos inícios dos anos 1990, a violência saiu dos porões para as ruas.
A partir dessa violência do Estado, foi surgindo uma reação, irracional, diga-se, no submundo, iniciada nas tocas do tráfico de drogas, mas que também ganhou as ruas e passou a combater a polícia. A chamada guerra contra o tráfico no Rio de Janeiro era um presságio da tragédia anunciada, porque não existe guerra sem que haja dois lados dispostos e com a certeza da força para combater. Em pouquíssimo tempo, o Brasil conseguiu destruir a autoridade das instituições de Estado, principalmente da segurança pública, e o caos se instalou.
Ninguém está seguro, nenhuma instituição ou autoridade tem força para conter a violência, que se banaliza cada vez mais. Chegamos em 2013 com uma taxa 25,8 mortes violentas para cada 100 mil habitantes. O índice considerado suportável pela Organização Mundial de Saúde é de dez mortes por 100 mil habitantes.
Ninguém teme a punição. E diante do aumento da violência e da banalização do mal, nossas autoridades constituídas apresentam como remédio o simples recrudescimento das penas, quando todos os diagnósticos apontam para a necessidade de se construir uma cultura de paz. Neste sentido, nada é possível enxergar no horizonte.
Valmir Lima é jornalista, graduado pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (Ufam), com pesquisa sobre rádios comunitárias no Amazonas. Atuou como professor em cursos de Jornalismo na Ufam e em instituições de ensino superior em Manaus. Trabalhou como repórter nos jornais A Crítica e Diário do Amazonas e como editor de opinião e política no Diário do Amazonas. Fundador do site AMAZONAS ATUAL.
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