A história da privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário em Manaus é perpassada por conflitos e contradições. Inúmeros acontecimentos corroboram esta constatação: processo de privatização conturbado e repleto de irregularidades (2000), estado de calamidade pública (2006), Comissões Parlamentares de Inquéritos (2005 e 2012), ineficiência das concessionárias, falta de transparência, descumprimento de metas contratuais e conivência da prefeitura municipal (poder concedente).
Este trágico desempenho da iniciativa privada na gestão de serviços públicos não constitui uma exclusividade de Manaus, mas é percebido em diversos lugares do mundo. Não é por acaso que atualmente estar em curso uma forte onda de reestatização dos serviços públicos. As privatizações trouxeram grandes frustrações e prejuízos socioambientais, sendo que as reestatizações foram motivadas principalmente por reclamações de preços altos, falta de investimentos por parte da iniciativa privada e serviços ruins.
Segundo o Transnational Institute (TNI), entre 2000 e 2017, houve 884 processos em que os serviços privatizados foram devolvidos ao controle público em todo o mundo. São casos de concessões não renovadas, contratos rompidos ou empresas compradas de volta, em sua grande maioria de serviços essenciais como distribuição de água, energia, transporte público e coleta de lixo. Deste total, pelo menos 835 são remunicipalizações (quando os serviços são originalmente da prefeitura) e 49 nacionalizações (ligadas ao governo central). E a tendência é acelerada: mais de 80% dos casos aconteceram de 2009 em diante.
Já falamos sobre a reestatização do serviço de abastecimento de água de Cochabamba (Bolívia), mas hoje resgataremos a história de Buenos Aires, capital da Argentina, nosso vizinho do sul. Os serviços de abastecimento de água e saneamento da Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA) foram concedidos, em 1993, à empresa multinacional francesa Suez por 30 anos, convertendo-se, na época, na maior concessão privada do mundo, o que significava uma população de cerca de 9 milhões de pessoas.
O período entre o inicio da privatização e o ano 2002 marca com inúmeras contradições e conflitos a gestão do consórcio privado Águas Argentinas S. A. (AASA). Este período se caracterizou por recorrentes renegociações contratuais relacionadas com aumentos tarifários e por repetidas reclamações governamentais por descumprimento de metas no que diz respeito a investimentos, expansão dos serviços, preservação ambiental e controle de qualidade da água, entre outros problemas. Estas renegociações sempre foram favoráveis aos interesses da concessionária e a conivência do poder público configurou-se pelo receio do impacto político de interromper a privatização.
Ao longo deste primeiro período, a empresa conseguiu realizar alterações contratuais, incorporando enormes benefícios: a dolarização da tarifa, a eliminação do princípio regulatório que limitava os aumentos tarifários em função da renda média dos usuários, a introdução da possibilidade de solicitar uma “revisão extraordinária” do contrato a cada ano e a anulação ou adiamento de vários investimentos estabelecidos no contrato de concessão.
Apesar de todas as revisões introduzidas em favor da concessionária privada, o Agente Regulador (ETOSS) constatou que entre 1993 e 2002, a AASA cumpriu somente 60,9% das metas contratuais de investimentos e expansão dos serviços. No que diz respeito à preservação ambiental, o Agente Regulador constatou também o descumprimento da meta por parte da concessionária.
Para se ter uma ideia concreta do desempenho da empresa, o acordo original de ampliar o abastecimento de água de 70% para 100% da população, em 2003, foi alterado para uma meta de 88%, mas em 2002, a cobertura alcançada pela AASA não passava de 79%. Igualmente, os serviços de esgotamento sanitário, que previam, originalmente, uma ampliação de 58% para 95% da população, tiveram metas reduzidas para 74%, mas alcançou, em 2002, somente 63% da população. Isso significava que, em 2002, oitocentas mil pessoas não tinham acesso à água potável e mais de um milhão de pessoas estavam sem serviços de esgotamento sanitário.
O aumento das tarifas constitui outro indicador de desempenho da concessionária. Entre maio de 1993 e janeiro de 2002, a tarifa residencial média aumentou em 87,9%, enquanto neste mesmo período o Índice de Preços ao Consumidor aumentou somente 7,3%. Ademais, as renegociações contratuais eliminaram os subsídios cruzados, que beneficiavam as populações mais pobres, provocando um forte impacto nas contas destes usuários. Com isso, entre 1993 e 2002, a tarifa básica para estes setores sociais sofreu um aumento de 177% enquanto as tarifas das classes mais abastadas tiveram um aumento de somente 44%.
O período entre 2003 e 2006 constitui para a concessão privada um tempo de conflitos diante do abandono da dolarização das tarifas, determinado pela Lei de Emergência Pública e de Reforma Cambiária (Lei nº 25561). Esta Lei também estabelecia a renegociação de todos os contratos com empresas privadas. Com isso, a AASA reagiu com pressões ao governo, de maneira direta ou através de acionistas estrangeiros, além de apelar para o Centro Internacional de Ajuste de Diferenças Relativas a Investimentos (CIADI). Além disso, os governos dos países onde os acionistas tinham sede, principalmente a França, protestaram junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para pressionar a Argentina resolver os assuntos em favor da AASA. Estes acontecimentos impuseram fortes restrições e pioraram as condições do processo de negociação do contrato.
A partir de 2003, se formava um forte consenso de que as privatizações da década de 1990, e em particular, a AASA, acarretavam um pesado custo social. Uma série de documentos oficiais e dados apresentados por organizações da sociedade civil (grupos de usuários e organizações não-governamentais) forneceram provas do descumprimento sistemático do contrato por parte de concessionária. O governo ainda tentou fazer uma negociação com a empresa, mas esta apresentou, em 2004, uma série de exigências, visando o equilíbrio financeiro da concessão: aumentos tarifários, empréstimos, injeção de recursos públicos para a realização de obras, benefícios ficais e isenção de imposto de renda.
As autoridades argentinas consideram estas propostas inaceitáveis, ampliando os enfrentamentos com a concessionária. Finalmente, em março de 2006, o governo sancionou os decretos de Necessidade e Urgência 303/2006 e 304/2006, cancelando a concessão privada dos serviços de água e esgotos de Buenos Aires. De imediato, foi criada a Água y Saneamentos Argentinos (AySA), que através de um regime de propriedade participativa (o Estado possui 90% e o Sindicato dos Trabalhadores possui 10%), assumiu a responsabilidade dos serviços.
A reestatização dos serviços de água e esgoto em Buenos Aires demonstra mais uma vez a incapacidade da iniciativa privada oferecer um serviço pautado, não pela obsessão ao lucro, mas pela eficiência social, disponibilizando serviços essenciais ao conjunto da população. Estes serviços implicam estabelecer subsídios à provisão de bens públicos essenciais e promover os benefícios sociais e ambientais cujos impactos ultrapassam as fronteiras de um só setor.
Os últimos dados fornecidos pelo Serviço Nacional de informação sobre Saneamento (SNIS 2017) demonstram que a eficiência social da concessão privada em Manaus também está distante do minimamente aceitável. De acordo o SNIS, a tarifa de água, associada a uma assustadora tarifa de esgoto (100% do valor da água consumida), proporcionou para a empresa a arrecadação de um bilhão e seiscentos e setenta e seis milhões e setecentos e quarenta mil reais nos últimos cinco anos enquanto o investimento realizado foi somente de trezentos e onze milhões de reais ao longo do mesmo período. O SNIS também indica que a cobertura de redes de distribuição de água alcança somente 89,26% da população manauara, mantendo um total de duzentos e vinte e nove mil pessoas sem acesso à água potável. Quanto ao esgotamento sanitário, a empresa exclui dos serviços de tratamento de esgoto um milhão e oitocentos e setenta mil pessoas.
Este desempenho da concessão privada em Manaus coloca a cidade como a 2ª pior capital da Amazônia e a 5ª pior entre as 100 maiores cidades do Brasil. Além disso, o DATASUS/2017 (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde) informa que na capital amazonense 1.899 pessoas são internadas por ano devido a doenças de veiculação hídrica, desembocando na morte de 34 delas. Estas pessoas pertencem às classes mais pobres, que sofrem com a falta de água potável e saneamento básico na cidade.
Estes dados apontam para a tragédia da privatização em Manaus. Eles seriam mais do que suficientes para convencer aos argentinos sobre a necessidade da reestatização dos serviços de água e esgotos. O exemplo dos argentinos mostra que a mobilização da sociedade abre possibilidades. Esta mobilização torna-se urgente quando levamos em consideração o sofrimento das populações mais vulneráveis, excluídas por não corresponderem aos interesses de mercado da empresa.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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