A sociologia reconhece diversos instrumentos de manifestação política e de protesto social. Historicamente, as sociedades legitimam as formas de manifestação política de acordo com o nível de sua influência nas decisões políticas localizadas ou ampliadas, a depender do grau da incidência. Os instrumentos políticos são diversos e variados e vão desde os protestos nas redes sociais, passando pelas manifestações de rua até a sua forma mais radical que é a greve de fome.
A sociologia considera a greve de fome como um recurso político extremo. É uma das formas de manifestação política mais cara e respeitada em praticamente todas as sociedades.
A greve de fome é a renúncia voluntária da alimentação por parte de uma pessoa ou um grupo como forma de protesto político. É uma modalidade radical de protesto colocando em risco a própria via em favor de toda sociedade. Os especialistas em nutrição garantem que uma pessoa adulta em perfeito estado de saúdo só conseguirá sobreviver à inanição por no máximo 80 dias, ingerindo somente água. Após o 80º dia o risco de morte é eminente. A depender da situação, as sequelas do jejum prolongado podem ser irreversíveis e variam desde comprometimento físico à paralização neurológica por falta de irrigação das vias cerebrais.
O objetivo de uma greve de fome é provocar um debate em toda sociedade sobre uma determinada decisão política e impactar sobre tal decisão influenciando o “oponente político” de forma radical e extrema. Diante da greve de fome, o “oponente político” é forçado a repensar seu posicionamento: se ele rever sua decisão, os grevistas atingem seu objetivo. Se ele deixar os grevistas morrerem, a greve de fome também cumpre seu objetivo que é o de radicalizar os instrumentos políticos mediante decisões que podem vir a comprometer os destinos de toda a sociedade.
A história política mundial está carregada de exemplos de greve de fome que incidiram diretamente em importantes questões políticas. Um dos casos mais famosos foi o de Mohandas Gandhi, o líder popular da Índia que fez sua primeira greve de fome em 1932, com o objetivo protestar contra a decisão do governo britânico de separar o sistema eleitoral da Índia por castas. O governo recuou e as greves de Gandhi foram retomadas outras vezes como forma de resistência popular e desobediência política ao governo britânico que sempre recuava diante da pressão pública neste tipo de protesto.
Em 2010, o dissidente cubano Guillermo Fariñas, fez uma greve de fome de 135 dias em protesto contra a prisão de ativistas políticos em Cuba e chamou a atenção do mundo inteiro. O governo cubano cedeu às pressões e iniciou a libertação dos ativistas, pondo fim ao protesto de Fariñas, para evitar maiores repercussões como as ocorridas com a morte de outro grevista, o dissidente Orlando Zapata Tamayo, que morreu após 85 dias de greve de fome. Fariñas passou por diversas cirurgias para corrigir as sequelas da sua greve de fome.
Considerada uma das greves de fome mais longas da história, a ativista dos direitos humanos Irom Sharmila Chanu iniciou sua greve de fome em 2000 em protesto às atrocidades cometidas pelas Forças Armadas indianas no Estado de Manipur, no noroeste da Índia. A jovem Sharmila foi acusada pelo governo de tentativa de suicídio e levada preza. Na cadeia, introduziram em seu corpo uma sonda gástrica por onde é alimentada involuntariamente há mais de 17 anos.
Na greve de fome a pessoa coloca seu próprio corpo como ‘arma de luta’, como um instrumento político. É isso que está acontecendo em Brasília há mais de uma semana. Um grupo de pessoas, a maioria mulheres, colocam seus corpos e suas vidas em risco por uma causa política que envolve toda a sociedade.
Na história política do País houve diversas greves de fome como forma de protesto político, especialmente durante o governo da ditadura militar. Mas, poucas foram as greves de fome coletivas como a que ocorre desde o último dia 05 de dezembro.
O protesto iniciado por lideranças do MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), vem ganhando manifestações de apoio em todo Brasil e ganhando reforço com novas adesões à greve, despertando a opinião pública para a grave situação das possíveis perdas de direitos trabalhistas na reforma da Previdência, em curso no governo. São os camponeses que tomam a iniciativa de lutar contra a precarização dos direitos trabalhistas que interessa a toda sociedade brasileira. É uma parte importante da classe trabalhadora a ser impactada diretamente pelas reformas propostas.
Com o lema ‘”Alguns passarão fome por alguns dias para evitar que muitos passem fome uma vida inteira’, os grevistas chamam a atenção da sociedade para uma maior participação no processo de decisão referente à Reforma da Previdência prevista na Proposta de Emenda à Constituição – PEC 287/2016.
Esta greve de fome, enquanto instrumento político, é um direito legítimo do coletivo grevistas. Mas, a nossa Constituição Federal de 1988 assegura em seu artigo 196, que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação”. Diante disso, o que quer que aconteça com esse grupo em greve de fome é responsabilidade direta do Estado. Enquanto isso, resta à sociedade refletir sobre a situação, somar-se de diversas formas ao legítimo instrumento político, acompanhar com o merecido respeito a iniciativa do grupo que parece irreversível e aguardar o desfecho.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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