No início desta semana, veio a público a redação de uma carta assinada por 152 bispos, arcebispos e bispos eméritos da Igreja Católica do Brasil, criticando as medidas tomadas pelo governo federal perante as crises sanitária, econômica e social em curso. A chamada “Carta ao Povo de Deus” representa a posição de lideranças religiosas de diversas partes do Brasil, que ensejam realizar a sua missão evangelizadora ao assumir a defesa dos pequeninos, da justiça e da paz, frente aos interesses intransigentes de uma economia centrada no mercado e no lucro a qualquer preço.
Os religiosos buscam despertar a população brasileira em relação à gravidade da situação em que vivemos e denunciam a falta de coordenação do governo federal, liderado pelo presidente Jair Bolsonaro. Segundo os clérigos, tal situação é agravada pelas posturas governamentais que negam a ciência, posicionam-se contra Estados, municípios e outros poderes da República, flertam com setores totalitários e antidemocráticos e utilizam-se de notícias falsas para promover radicalismos e divisões.
As medidas tomadas pelo governo entram em choque com o ideal de uma sociedade justa e solidária, prejudicando as populações mais vulneráveis, tais como, comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que vive nas ruas, aos milhares em todo o Brasil. Por outro lado, tais medidas materializam um modelo econômico que privilegia os conglomerados econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem.
A Carta dos bispos, através de inúmeros exemplos, demonstra que o atual governo brasileiro tem privilegiado pequenos grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população. Neste sentido, vale a pena resgatar a reportagem do Jornal Folha de São Paulo, de 29 de julho de 2020, que relata como o governo de Jair Bolsonaro “acelerou canetadas sobre meio ambiente durante a pandemia”, visando flexibilizar as leis ambientais para promover a posse ilegal de terras.
A omissão e a indiferença do governo em relação ao sofrimento das vítimas da covid-19 também podem ser visualizadas nos assassinatos dos ativistas ambientais, cujas mortes colocam o Brasil em 3º lugar no ranking dos países que mais matam defensores da natureza. Com 24 assassinatos em 2019, o Brasil ocupa esta vergonhosa colocação, segundo o relatório da ONG Global Witness, que registrou 212 vítimas em todo o mundo – o pior índice já registrado.
A denúncia dos bispos busca também confrontar as medidas governamentais que colocam as riquezas naturais sob o monopólio das grandes empresas, impedindo o acesso justo das populações mais pobres. A privatização dos bens comuns, como a água, serve aos interesses dos grandes mercadores, se chocando frontalmente com os ideais de uma sociedade solidária, pois os mais pequeninos serão sempre preteridos e ignorados.
Desmascarando a perversidade de “uma economia que mata” e denunciando aqueles que a defendem a todo custo, os religiosos apontam para um modelo de evangelização sintonizado com os ensinamentos de Jesus de Nazaré, que se empenhou em defender a vida e promover a paz, enfrentando as perseguições deflagradas pelos seus algozes, que pertenciam às classes mais abastadas da sociedade.
Ao provocar uma reação tão explicita dos bispos católicos, a sociedade brasileira demonstra que passa por uma crise estrutural incontestável. A injustiça presente nas ações governamentais aparece sem nenhum disfarce, sendo visível até aos mais despercebidos. O Brasil saiu à rua sem máscara, expondo as suas mais profundas misérias e contradições. É constrangedor o fato de que alguns ainda não conseguem vê-las!
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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