Nos últimos meses, estamos vendo uma intensa discussão sobre possíveis alterações na legislação que regula o saneamento básico no Brasil. Depois das tentativas malsucedidas do governo Temer (MPs 844/2018 e 868/2018), o governo Bolsonaro busca modificar o Marco Regulatório do Saneamento básico, através do PL 3261/2019, visando reduzir a presença do Estado neste setor e promover a transferência dos serviços abastecimento de água e esgotamento sanitário para o empresariado, que anseia por obter muito lucro nas grandes cidades brasileiras.
Manaus, a maior metrópole da Amazônia, já vive esta realidade há quase 20 anos. As informações mais recentes mostram que a privatização do abastecimento de água e do esgotamento sanitário na capital amazonense tem gerado resultados decepcionantes. Duas décadas de privatização não trouxeram a tão esperada universalização destes serviços, mostrando que a iniciativa privada não prioriza os interesses coletivos da cidade, mas a produção de lucros para enriquecer os acionistas dos conglomerados multinacionais. No caso da Aegea Saneamentos (controladora da concessionária Águas de Manaus), os investidores do Banco Mundial e do Fundo Soberano de Cingapura estão bastante satisfeitos.
Segundo os dados oficiais (SNIS 2017), a rede de abastecimento de água de Manaus alcança somente 89% da cidade, deixando um total de 228.889 pessoas sem o acesso à água potável. Se considerarmos os moradores que optaram por não se ligar ao sistema por falta de condições de pagamento das tarifas, os excluídos do abastecimento formam um grupo bem mais amplo. Quanto ao esgotamento sanitário, a realidade é mais grave ainda. O sistema privado oferece coleta e tratamento de esgoto somente para 12% da cidade, excluindo destes serviços um total de 1.869.202 (um milhão, oitocentas e sessenta e nove mil e duzentas e duas) pessoas.
Esta situação acarreta grandes prejuízos para a área da saúde pública. O DATASUS/2017 (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde) destaca que na capital amazonense 1.899 (um mil, oitocentas e noventa e nove) pessoas são internadas a cada ano devido a doenças de veiculação hídrica, desembocando na morte de 34 delas. Não precisa dizer que estas pessoas pertencem ao grupo das pessoas que sofrem com a falta de água potável e saneamento básico na cidade.
Esta situação pode ser vista ao longo de toda a cidade, mas afeta principalmente as periferias, onde reside a maioria das pessoas que têm direito à tarifa social (Dec. n° 2.748/2014). Este benefício, que deveria atender 128 mil famílias contempladas pelo Programa Bolsa Família, enfrenta a animosidade da concessionária, resiste à prestação dos serviços aos mais pobres. Apenas 16.339 famílias são atendidas pela tarifa social em Manaus (SNIS 2017).
Em Manaus, 74% da água tratada é desperdiçada ao longo da distribuição. Esta realidade é revoltante diante da falta de água na cidade. Salta à vista o desinteresse da empresa em investir na manutenção e conservação das adutoras e encanações que integram a rede de abastecimento. Assim, a privatização tem obtido péssimos resultados no trabalho de preservar os mananciais como forma de aliviar a pressão da demanda sobre os recursos hídricos (água doce) existentes no planeta.
Por outro lado, os lucros obtidos pelo empreendimento despertam o interesse de qualquer empresário. De acordo com o SNIS, a tarifa de água, associada a uma assustadora tarifa de esgoto (100% do valor da água consumida), proporcionou à empresa uma arrecadação de R$ 1.676,74 (um bilhão, seiscentos e setenta e seis milhões e setecentos e quarenta mil reais) durante os últimos 5 anos enquanto o investimento realizado foi somente de R$ 311,44 (trezentos e onze milhões e quatrocentos e quarenta mil reais) ao longo do mesmo período.
Este desempenho dos serviços de água e esgoto realizados pela iniciativa privada coloca Manaus como a 2ª pior capital da Amazônia e a situa entre as três piores no ranking das 100 maiores cidades do Brasil. Assim, levando em conta este desempenho, impõe-se a necessidade de resistir às propostas do atual governo que procuram inviabilizar as empresas estatais e municipais, forçando a transferência dos serviços de água e esgoto para a iniciativa privada. É neste contexto que se faz necessário repudiar a privatização do saneamento básico no Brasil.
Moção de repúdio
As delegadas e delegados reunidas no 13° Congresso Nacional da CUT, realizado nos dias 7 a 10 de Outubro de 2019, em Praia Grande – SP, vêm por meio deste repudiar o PL 3261/2019, de autoria do Senador Tasso Jereissati e que muda o Marco Regulatório do Saneamento, em especial no que tange ao fim dos contratos de programa, afetando diretamente o subsídio cruzado existente no setor e inviabilizando a participação pública na prestação dos serviços, resultando na privatização do setor com consequente aumento de tarifas e sucateamento dos serviços em municípios pequenos e nas regiões de maior vulnerabilidade social.
O PL é fruto de duas malfadadas Medidas Provisórias (MPs 844 e 868) que devido a diversas ilegalidades e inconstitucionalidades em seus conteúdos e forte resistência das entidades do setor, em especial da Federação Nacional dos Urbanitários – FNU/CUT, dos Estados externalizada na carta dos governadores e dos municípios (Frentes de prefeitos e municípios), nem chegaram a ser votadas na Câmara ou no Senado.
Contudo, contrariando todas as críticas tecnicamente apresentadas, o Senador Tasso Jereissati apoiado pelo Governo Bolsonaro, em especial pelo Ministro Paulo Guedes, apresentou o PL 3261/2019, diretamente ao Senado Federal onde foi aprovado e agora segue em debate na Comissão Especial na Câmara Federal.
Como citado o PL tem inconsistências profundas (ataque frontal ao pacto federativo com invasão de competência dos Estados e Municípios pelo governo federal, acaba com os contratos de programa expulsando o poder público das prestações dos serviços públicos de Saneamento, acaba com os subsídios cruzados o que vai inviabilizar a universalização dos serviços principalmente nas regiões periféricas e Municípios com baixa densidade demográfica, e resultará na privatização setor acabando com a possibilidade de universalização dos serviços para toda a população e no aumento exorbitante das tarifas.
No mundo existe um grande movimento de reestatização/remunicipalização em diversos setores, inclusive nos de serviços públicos, em especial no de Saneamento. Neste sentido cumpre destacar países como Estados Unidos, França, Alemanha e Argentina que já retomaram os serviços das mãos da iniciativa privada devido a diversos motivos, mas com destaque para a má gestão, a falta de investimentos, a não universalização dos serviços e o aumento de tarifas. No Brasil podemos citar Manaus, Tocantins e Itu como exemplos de privatizações que deram errado e que a população ficou prejudicada, principalmente com a falta dos serviços.
Por todo o exposto repudiamos o PL 3261, exigimos que o governo federal crie linhas de crédito exclusivas para o setor, aumente o Orçamento Geral da União permitindo investimento previsto no Plano Nacional de Saneamento Básico para a universalização, crie um fundo nacional de saneamento para a universalização dos serviços com prioridade de investimentos nas áreas periféricas, desburocratize o acesso público aos recursos dos bancos públicos de fomento para viabilizar a prestação pública dos serviços, por fim, cobramos que a comissão especial rejeite os pontos aqui criticados e que aprove relatório que garanta a prestação dos serviços públicos de Saneamento por empresa pública, com tarifa justa e acessível a toda a população brasileira e que avance no sentido da universalização.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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