
O Atlas do Desenvolvimento Humano revela que o Brasil persiste entre as lideranças do vergonhoso ranking da desigualdade, despontando como o segundo país com maior concentração de renda do mundo. Com dados referentes ao ano de 2018, o Índice de Desenvolvimento Humano mostra que um terço de todas as riquezas brasileiras está nas mãos do 1% mais rico da população.
Além do baixo crescimento econômico nos últimos anos, é possível destacar outros fatores que influenciam neste triste desempenho. Reformas recentemente realizadas, tais como, a trabalhista e a da Previdência, contribuirão para a precarização da qualidade de vida da classe trabalhadora. Analistas alertam que estas iniciativas rebaixam o custo da força de trabalho e aumentam as margens de lucro, ampliando a desigualdade entre capital e trabalho. Tudo isso ajuda na concentração de renda e tem um peso significativo sobre a pobreza e a extrema pobreza.
Tradicionalmente, no interior destas estatísticas se encontram clivagens referentes às questões raciais e de gênero. Os dados mostraram que as mulheres estão em melhores condições em questão de saúde e educação em relação aos homens. No entanto, quando o assunto é renda bruta os homens ficam melhores posicionados. A renda nacional bruta per capita da mulher é 41,5% menor que a do homem. Em dólares, essa diferença equivale a US$ 10.432 por ano contra US$ 17.827 para os homens.
Outra clivagem diz respeito à questão racial. Levantamento do IBGE (2019) mostra que 55,8% da população brasileira em 2018 se declararam preta ou parda (a soma das duas raças resulta nos negros). Entretanto, no estrato dos 10% com maior rendimento per capita, os brancos representam 70,6%, enquanto os negros são 27,7%. Entre os 10% de menor rendimento, isso se inverte: 75,2% são negros, e 23,7%, brancos.
O sociólogo Jessé Souza assegura que a desigualdade social no Brasil é resultado de um processo modernizador viciado. Segundo o professor, a modernização capitalista instaurou a desigualdade na sociedade brasileira, uma vez que libertou os escravos e os abandonou sem o menor apoio das instituições, obrigando-os a viverem em situações de humilhação e precariedade. Desamparando a grande maioria da população frente à lógica competitiva do capital, a modernização brasileira instituiu um modo de existência subumano, marcado por condições insalubres – a subcidadania – e configurou um habitus precario, que leva os pobres a aceitarem e incorporarem um lugar subalterno na pirâmide social.
O cientista social Thomas Piketty estuda os processos de desigualdade social no mundo, constatando a ampliação deste fenômeno a partir dos anos 1980, período de preconização das políticas neoliberais, que rejeitam a atuação do Estado na economia e estimulam a liberdade do mercado diante de qualquer regulação. Em estudo recente, este sociólogo desconstrói os discursos ideológicos que justificam a desigualdade social nas diferentes partes do globo. Além disso, Piketty assegura que a desigualdade não é um fenômeno natural, mas trata-se de uma escolha econômica, política e tributária realizada pelas sociedades envolvidas.
Os sistemas desigualitários, que retêm as riquezas nas mãos das elites dominantes, buscam se consolidar a cada geração, lançando mão de estratégias que levam ao culto da propriedade privada e à demonização dos bens públicos. Neste sentido, as iniciativas de privatização das empresas públicas, principalmente as mais rentáveis, passam a ser cada vez mais praticadas no mundo capitalista. No Brasil, por exemplo, ocorre atualmente um intenso processo de desestatização e um forte lobby empresarial visando à privatização dos serviços de saneamento básico, já em curso na cidade de Manaus e no Estado do Tocantins, territórios amazônicos.
A crise da pandemia expõe a inviabilidade do capitalismo neoliberal e mostra a importância da defesa dos bens comuns, sugerindo a ruptura das desigualdades e a criação de condições sustentáveis para todos os seres vivos. A crise provocada pela Covid-19 aponta para a necessidade de promovermos adequadamente bens coletivos, como o sistema de saúde pública, o sistema educacional, o saneamento básico, os recursos naturais e a renda básica. As condições sociais vivenciadas na atualidade tornam inaceitável a operação destes bens públicos tendo em vista a geração de lucros privados, que promovem ainda mais as desigualdades sociais e lançam milhares de pessoas na pobreza e na extrema pobreza.
A crise sanitária e seus efeitos destruidores nos obrigam a confrontarmos o paradigma capitalista que promove a acumulação de riquezas nas mãos de poucos, a ampliação da pobreza e a devastação do meio ambiente. Contrariando as elites político-econômicas nacionais e internacionais, precisamos reconfigurar as nossas sociedades a partir de um princípio mais responsável com a manutenção e a proteção da vida, que hoje expõe as suas fragilidades. Esta postura ética demanda que criemos condições mínimas para que a humanidade continue fazendo história, retirando do acervo de experiências coletivas lições de fraternidade, que rompem com a lógica da exclusão.
As eleições municipais constituem mais uma oportunidade de repensarmos a injustiça do nosso sistema político, econômico e social, que se perpetua em antigos grupos políticos, por vezes, se revestindo com caras novas, mas portando a velha intencionalidade retrógrada e autoritária. É hora de fazermos a experiência do diferente, muitas vezes já presente, mas sempre anulado pela violência dos poderes de plantão. Apesar do cenário desfavorável, é sempre possível fazer algo para fomentar uma sociedade mais democrática e menos desigual.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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