Certos temas e problemas que marcaram a modernidade constituíram-se também em tendências contemporâneas na área de segurança pública e justiça.
Essas tendências, expostas muitas vezes nas ocorrências policiais do cotidiano, refletem tensões da sociedade pós-moderna, praticamente em toda parte. São eventos que se puseram na agenda do mundo ocidental contemporâneo, seja no Amazonas seja noutros estados e em outros países. Em qualquer lugar, pode-se reconhecer, ao lado dos eventos tradicionais que inflam os indicadores de criminalidade, a existência de certas tendências contemporâneas desafiadoras da atuação policial, da gestão da segurança pública e da justiça.
O que se quer dizer com isso? Sinteticamente, que certos delitos figuram há tempos, observadas as especificidades culturais, em códigos penais dos países do Ocidente: crimes contra a pessoa (homicídios, lesões corporais, abandono de incapaz, maus-tratos, crimes contra a honra, crimes contra a liberdade individual etc.), crimes contra o patrimônio (furto, roubo, latrocínio, extorsão, usurpação…), crimes contra a família, dentre outros. E há certos tipos de violência e de infrações penais mais recentes, tais como os crimes contra a organização do trabalho, contra a dignidade sexual, contra a incolumidade pública, contra a paz pública, contra a administração pública e outros mais. E há também certas formas de violência e de eventos criminosos que passaram a configurar novas tendências, requerendo assim das polícias e da segurança pública abordagens e ações não apenas especializadas, como também integradas e sistêmicas.
Não que certas violências e delitos inexistissem, mas que somente em tempos mais atuais certas violações a direitos tomaram forma jurídica concreta e devidamente tipificada em muitos ordenamentos legais, inclusive no direito penal brasileiro, demandando providências não somente repressivas e punitivas, como também medidas socioeducativas e ações sistêmicas a ponto de surtirem efeitos na área de segurança pública.
Devido à frequência e à expansão dessas práticas delituosas e de violência ilegítima, pode-se observar a confirmação de certas tendências contemporâneas fomentadoras de insegurança, decorrendo daí questionamentos acerca dessas tendências como fatores que passam a influir na composição da criminalidade:
a) Como o relacionamento doméstico se converteu numa questão de segurança pública?
b) O que justificou a proteção da mulher, da criança, do adolescente, do negro, do homossexual, do meio ambiente, dentre outros, sobretudo na esfera penal, criminalizando a violência praticada contra essas pessoas e bens?
c) Como certas práticas contra os idosos passaram a ser uma questão policial?
d) Como o preconceito racial e a homofobia passaram a se constituir em casos de polícia?
e) Por que a violência no trânsito passou a constituir um dos principais indicadores de violência urbana?
f) Como os presídios passaram a ser uma questão de segurança pública?
g) Como a questão ambiental passou a figurar como problema de polícia?
h) Por que as manifestações populares, os protestos de rua e até os “rolezinhos” podem se converter em problemas de segurança pública?
i) Quais os excessos e os riscos de se criminalizar movimentos sociais e manifestações populares?
j) Por que certas facções e organizações criminosas se expandiram a ponto de colocar em risco a segurança da sociedade e a licitude da ordem econômica?
k) Em que medida a atuação e a omissão dos poderes, a criminalização das manifestações políticas, a publicidade e a mídia, a atuação de agentes públicos, inclusive da própria polícia e do poder judiciário, concorrem para a reprodução dessas tendências criminosas e também se constituem em problemas de segurança pública?
l) Como a demora do trâmite dos processos criminais e a qualidade das decisões judiciais impacta a segurança pública?
m) Quais os riscos e as consequências da politização de processos judiciais?
n) De que maneira a privação de direitos básicos, a vulnerabilidade social e a educação de baixa qualidade concorrem para inflar as taxas de criminalidade?
Tais questões conduzem a outras perguntas: seriam os problemas de segurança pública necessariamente problemas de polícia? Em que medida a atuação das polícias é suficiente para lidar ou resolver problemas de segurança pública? Por outro lado, ao invés de partirmos da polícia para tratar das questões de segurança pública, como gerir esses problemas de modo a evitar que eles também cheguem ao ponto de se converterem em casos de polícia e de internação carcerária?
Há algum tempo, tem-se percebido, de forma cada vez mais nítida, que as respostas aos problemas de segurança pública não se reduzem à atuação dos órgãos policiais e às respostas de sistemas penitenciários. Aliás, no caso do Brasil, alguns sustentam que o entendimento reducionista pode decorrer de uma leitura apressada e equivocada do art. 144/CF. No entanto, ainda é muito frequente reduzir-se as questões de segurança pública a caso de polícia e de presídio.
As questões que as tendências contemporâneas colocam à segurança pública e ao sistema de justiça criminal requerem respostas mais sistêmicas, integrais e integradas, capazes de articular ações repressivas e urgentes a outras de natureza mais mediatas e preventivas. Significa a agir sobre as causas imediatas do crime, ainda que superficial e mesmo topicamente, como também promover outras intervenções de caráter mais profundo e estrutural. Do contrário, sem que ocorra esse pari passu de ações estruturais e de as ações imediatas ou urgentes, tópicas e superficiais, sejam preventivas sejam repressivas, tais ações tendem a deixar de surtir os devidos efeitos, tornando as providências obsoletas, uma vez que o crime rearticula-se com certa celeridade, incorporando medidas de superação das ações e providências adotadas para combatê-lo.
Por conta disso, às operações imediatas e intervenções superficiais para lidar com os problemas da insegurança pública é fundamental assomarem-se ações estruturais, sistêmicas e integradas, a fim dar respostas de gestão pública adequadas às tendências contemporâneas na área de segurança pública e de justiça.
Pontes Filho é Cientista Social
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