A crise humanitária, social e política provocada pelo coronavírus exige refletirmos sobre a importância dos bens comuns. A atribuição desta qualidade – comum – a alguns bens é justificada pela sua centralidade na existência da humanidade, sendo considerados como propriedade do público, que não pode ter seu acesso negado a eles. Entre estes bens encontram-se os recursos naturais como o ar, a água, a terra, as florestas e a pesca. São vistos também como propriedades públicas, a cultura e o conhecimento, assim como a saúde, a educação e os serviços sociais.
A doutrina do património público, que protege a propriedade pública, foi codificada pela primeira vez em 529 d.C. como o Codex Justinianus, assim chamado em homenagem ao seu criador, o Imperador Justiniano I, que disse: pelas leis da natureza, essas coisas são comuns a toda a humanidade – o ar, a água corrente, o mar e, consequentemente, a costa marítima. Essa lei comum foi copiada de muitas maneiras e em muitas jurisdições, incluindo a Carta Magna.
Na sua Encíclica Lautado Sí – Sobre o cuidado da casa comum, o Papa Francisco resgata o Concílio Vaticano II (1962 – 1665), lembrando que a ecologia humana é inseparável da noção de bem comum, princípio este que desempenha um papel central e unificador na ética social. Trata-se do conjunto das condições da vida social que permite, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria realização.
Mas a doutrina do patrimônio público está nadando contra uma maré de direitos privados cada vez maiores. A integridade e a saúde da propriedade pública foram desafiadas quando a globalização econômica e o fundamentalismo de mercado começaram a ser promovidos nos anos 1970 como o único modelo de desenvolvimento para o mundo.
Em poucas décadas, o capital tornou-se global e corporações empresarias dos países desenvolvidos expandiram suas operações para outros países para tirar vantagem da mão de obra barata, leis ambientais fracas e recursos naturais locais. Estas práticas impõem valores de mercado em domínios que deveriam ser livres da mercantilização, como os bens comuns, a vida familiar e comunitária, as instituições públicas e os processos democráticos.
Nesta campanha contra os bens comuns, o governo do Estado do Amazonas colaborou, vendendo à preço de bagatela a empresa de propriedade pública Manaus Saneamento, antiga subsidiária da Companhia de Saneamento do Amazonas (Cosama), para a corporação francesa Lyonnaise des Eaux. Contrariando todas as leis da ética e da civilidade, a água deixou de ser um direito de todos os cidadãos para ser um produto acessível exclusivamente aos que podem pagar.
Durante duas décadas, os órgãos de defesa do consumidor de Manaus foram unânimes em atestar a ineficiência da privatização, afirmando que os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário são os mais deficitários da cidade (Portal Acrítica, 25 de dezembro de 2019). Numa parceria perversa com o poder público municipal, a empresa Águas de Manaus impõe sofrimento a milhares de pessoas nas periferias, favelas, palafitas e bairros pobres. Hostilizados pela concessionária, estes setores sociais não usufruem de um bem comum essencial para a existência, que é o acesso à água potável e ao esgotamento sanitário.
Nesta cruzada contra os bens comuns, o capital atinge de morte também o meio ambiente. O Encontro das Águas de Manaus, fenômeno simbólico da região, se encontra ameaçado por grandes empresas que projetam construir um porto flutuante, trazendo efeitos nocivos não somente ao patrimônio paisagístico do local, mas também contribuindo com a extinção de espécies raras de animais e vegetais, além de destituir comunidades tradicionais de suas fontes de renda, como a pesca e agricultura familiar.
Este cerco do capital contra os bens comuns fragiliza as sociedades na sua reação perante catástrofes como a crise do coronavírus. As populações são destituídas de suportes comunitários, identitários e econômicos, ficando à mercê da economia selvagem capitalista, que discrimina os setores populacionais mais pobres por não conseguirem responder às exigências do mercado.
A onda de privatização dos bens comuns, prática inerente ao neoliberalismo político e econômico, transfere para a iniciativa privada os recursos socioambientais pertencentes ao conjunto da sociedade, dificultando reações locais e nacionais em momentos que exigem respostas rápidas e eficientes. A apropriação privada dos bens comuns torna mais difícil a vida das comunidades, principalmente aqueles setores mais pobres, dos quais foram tirados até os bens essenciais ligados à natureza, como a água, a terra e o meio ambiente saudável.
No Brasil, estudos atestam a dificuldade de sair da crise, apontando como causa as reformas neoliberais, tais como a Lei de Responsabilidade Fiscal (Fernando Henrique Cardoso) e a Emenda Constitucional do Teto de Gastos (Michael Temer e Jair Bolsonaro), que impedem o estado de utilizar os próprios recursos para investir adequadamente em setores estratégicos como a saúde, a educação, a habitação, o transporte público, a geração de empregos e o saneamento básico.
Ao invés de privatizar, em épocas de crises severas faz-se necessário promover os bens comuns e torná-los acessíveis a todos, possibilitando saídas às quais as comunidades possam recorrer: renda básica cidadã, serviços públicos gratuitos e universais e a terra para quem nela deseja trabalhar. No entanto, com as reformas neoliberais, o governo se omite diante da crise, entregando para a iniciativa privada os bens que pertencem a todos e abandonando a população no momento em que mais ela precisa. Desvela-se a estupidez do neoliberalismo personificado em políticos como Trump, Boris Johnson, Salvini, Duterte e Bolsonaro.
Por outro lado, muitos dizem que o ataque aos bens comuns é uma tentativa desesperada de defesa. O capitalismo já não é capaz de oferecer vida digna – como mostram, por exemplo, a concentração indecente de riquezas ou a redução da expectativa de vida mesmo nos Estados Unidos, centro do sistema. Além disso, está acossado pela emergência de novas relações – inclusive de produção – que ameaçam as bases em que se assenta. Para assegurar sua sobrevivência recorre, com frequência cada vez maior, à vigilância obsessiva, aos golpes, às guerras, aos assassinatos de inimigos, a políticos grotescos.
Para terminar, resgatamos a noção de bem comum fomentada na Encíclica Laudato Si. Para o Papa Francisco, o princípio do bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral. Toda a sociedade – e, nela, especialmente o Estado – tem obrigação de defender e promover o bem comum. Tendo em vista as grandes desigualdades e injustiças promovidas pelo sistema econômico hegemônico, é necessário compreender que a solidariedade para com os mais pobres é uma exigência ética fundamental para a efetiva realização do bem comum.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial do AMAZONAS ATUAL.