No dia 29 de junho de 2000 realizou-se, na antiga Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, o leilão da subsidiária estatal Manaus Saneamento, transferindo a gestão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário do município de Manaus para a iniciativa privada. Vigente até os dias atuais, esta concessão privada não tem sido celebrada, mas profundamente lamentada.
Começando pelo próprio processo de privatização, tal concessão é marcada por tensões, conflitos e contradições. Agendado inicialmente para o dia 14 de março de 2000, o leilão da estatal foi cancelado cinco vezes, por decisões judiciais, indicando quão numerosas eram as irregularidades denunciadas por entidades diversas. Decidiu-se, finalmente, efetivar o leilão, com várias questões judiciais a serem resolvidas.
Somente quinze anos depois (fevereiro de 2015), tais processos foram dirimidos pelo Tribunal de Justiça, que se viu obrigado a anular cláusulas judicialmente inconcebíveis e que geravam prejuízos significativos para o patrimônio público e para a população manauense. Tais cláusulas, segundo o poder legislativo, configuravam a privatização como uma “concessão maquiada” ao permitirem que a empresa privada fosse beneficiada com volumosos recursos públicos, enquanto eximia-se de recorrer às próprias finanças para realizar os investimentos necessários nos sistemas de água e esgoto da cidade.
Pautada durante tanto tempo por tais práticas antiéticas e judicialmente inaceitáveis, a privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário de Manaus caracteriza-se como um jogo promiscuo entre o poder público e o poder privado, em prejuízo da coletividade. Diante destas características, não é possível conceber esta negociação como algo que deve ser celebrado, mas intensamente lamentado.
As lamentações da privatização também são resultados de serviços precários ou ausentes em diversas partes de cidade. O desempenho da privatização dos serviços de água e esgoto foi reprovado, por exemplo, em 2005 e 2012, ocasiões em que a Câmara dos Vereadores de Manaus instaurou Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPI), constatando um sistemático descaso para com aqueles serviços por parte das empresas gestoras. Em tais investigações, as comissões não somente recomendaram a quebra do contrato de concessão, mas também solicitaram que as empresas fossem processadas criminalmente pela justiça estadual.
A insatisfação pelos serviços privatizados também pode ser visualizada nas informações dadas por órgãos de fiscalização e defesa do consumidor, tais como o Procon-AM. Este Instituto, que divulga a lista das empresas mais reclamadas da cidade, mostra que a empresa de água e esgoto (atualmente, Águas de Manaus) tem sido recorrentemente líder de reclamações a cada ano, apontando para a baixa eficiência da gestão privada.
Tal nível de desempenho também é constado pelo Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS), que se baseando em dados como a cobertura de água, a cobertura de esgoto, os investimentos realizados, o valor média tarifário e o desperdício de água tratada, mostra que Manaus tem comumente ocupado os piores lugares do saneamento no ranking das grandes cidades do Brasil.
Ao longo das últimas duas décadas, as populações mais pobres são as que mais têm sofrido com os serviços privatizados. A precariedade dos serviços e até a sua total ausência podem ser notadas em largas faixas da cidade, principalmente nas periferias e nos aglomerados subnormais (palafitas, favelas, ocupações e assentamentos), que abrangem 53,3% dos domicílios manauenses (IBGE 2020). Para confirmar o baixo desempenho da concessão privada, o Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento revela que somente 12,43% da cidade possuem serviços de esgotamento sanitário (SNIS 2018).
Ao expor o discurso falacioso da eficiência das empresas privadas de saneamento, a experiência de Manaus gera preocupação em todo o Brasil, uma vez que o governo federal busca impor a privatização dos serviços de água e esgoto em escala nacional. Centenas de cidades em todo o mundo já se arrependeram de terem privatizado os seus serviços, realizando o processo de reestatização e mostrando que este não um caminho socialmente viável, eticamente responsável, nem ecologicamente sustentável.
Ao aprofundar a exclusão social, infringindo mais sofrimento às populações pobres, a privatização do saneamento imposta a todo o Brasil demonstra que estamos na contramão dos países que buscam criar melhores condições para o conjunto de sua população. A privatização dos serviços essenciais faz parte de uma política estrutural historicamente pautada pela desigualdade em que somente as classes mais abastadas têm vez e voz.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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