No último mês de junho o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 4.162/19, impulsionando os processos de privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário em todo o Brasil. O PL foi apresentado pelo Senador Tasso Jereissati (CE), representante, na região nordeste, de uma das maiores multinacionais do planeja, a Coca-Cola, empresa que depende da água para sua existência e lucratividade.
O PL sugere que a iniciativa privada resolverá todos os problemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário no país, recorrendo ao seu próprio capital. A população de Manaus, no entanto, não se deixa enganar por este discurso, pois a experiência de duas décadas de privatização daqueles serviços projeta, cotidianamente, a realidade diante dos seus olhos, neutralizando a sedução do canto enganador do mercado.
No ano 2000, os versos declamados pelos representantes do mercado projetavam que hoje nós teríamos 98% da população acessando a água potável durante 24 horas por dia. Os mesmos versos também tentavam nos ludibriar, entoando que atualmente haveria esgotamento sanitário em quase 90% da cidade. No entanto, a realidade é bem diferente!
A realidade prevalece sobre a ficção. Os últimos dados fornecidos pelo Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS 2018) ajudam a iluminar o cenário indicando que a cobertura de abastecimento de água de Manaus alcança somente 91% da população. Tal indicador, mesmo assim, não corresponde à realidade. Como se sabe, a maioria dos domicílios da cidade (53,38%) está localizada em áreas de habitação subnormal (palafitas, ocupações e assentamentos), sinalizando que grande parte da população manauara está fora do sistema de abastecimento de água e outras significativas parcelas usufruem de um serviço precário.
A falta de esgotamento sanitário representa outro banho de realidade produzido pela privatização, pois os índices do SNIS mostram também que a concessionária Águas de Manaus disponibiliza este serviço para apenas 12,47% da cidade. Em Manaus, se a água é um artigo de luxo, a universalização do esgotamento sanitário constitui um sonho irrealizável nos moldes da concessão em curso.
A realidade produzida pela privatização pode ainda ser caracterizada pela violação dos direitos dos mais pobres. A negação da tarifa social aos que a ela têm direito constitui uma faceta perversa do mercado da água. Para esta lógica desumana a vida não representa um valor sagrado, mas ela está condicionada ao pagamento e ao retorno financeiro para os acionistas internacionais, que vivem no outro lado do mundo.
As tarifas mais caras da Amazônia são outros elementos do pesadelo. A voracidade pelo lucro é uma das características mais marcantes do empreendimento privado, mesmo que tenha que extorquir violentamente. Quem não proporciona lucro é deixado de lado e esquecido. Não é por acaso que a empresa Aegea Saneamento e antecessoras (Suez, Solvi e Águas do Brasil) abandonaram as periferias da cidade e não quiseram se envolver com as comunidades rurais e ribeirinhas.
A aprovação do PL 4.162 eleva um pesado local à escala nacional. Trata-se de favorecer as grandes empresas, que buscam ampliar infinitamente o seu capital às custas da precariedade de vida das classes mais empobrecidas. No entanto, muitas cidades pelo mundo a fora mudaram a sua história retomando a gestão dos serviços de águe e esgoto para torná-la mais democrática e atenta às necessidades da população. Ainda há uma luz no fim do túnel.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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