Por Ismael Benigno
Lendo um artigo de Slavoj Žižek sobre os funerais de Nelson Mandela e o intérprete esquizofrênico das autoridades presentes, publicado ontem pelo jornal The Guardian, percebi quanto do nonsense que cerca o mundo se aplica à terra em que nasci e cresci, o Amazonas. Vou chegar lá.
Žižek, ícone intelectual da esquerda planetária, disse que a falta de significado nos gestos sem nexo de Thamsanqa Jantjie eram um protesto contra a cerimônia como um todo, falsa e hipócrita. O intelectual defende que os intérpretes de sinais, todos eles, servem apenas à nossa – nós enquanto não-deficientes – vontade de nos sentir bem fazendo o bem, por menor que seja, a eles, os portadores de deficiência. Sim, o pensamento de esquerda consegue separar clara e gema até no caso de um intérprete falso, acusado de sequestro, estupro, falsidade e homicídio, transformando tudo em mais um embate entre “nós”, os socialistas do bem, e “eles”, os exploradores de intérpretes falsos do mal. Se o acusado for negro, então, a moçada se ouriça ainda mais. É necessário, está claro, um bom tanto de boa vontade para digerir a obsessão de alguns em “marximizar” até a margarina do café da manhã. Leseira não dá descanso.
Mas não era esse o ponto. Também ontem, quando li o artigo de Žižek, soube do lançamento do Atlas do Acesso à Justiça, do Governo Federal, mostrando a situação da tal “prestação jurisdicional”. E ali estava apenas a mais recente constatação de que, ou o amazonense é um povo esquizofrênico, ou os intérpretes de seus sentimentos são falsários.
Senão vejamos. Temos a terceira pior prestação jurisdicional do país. O que significa que, enquanto nossos desembargadores tentam aprovar mais vagas dentro do palácio da capital, as comarcas e as varas de justiça estão abandonadas no interior. Significa que não há advogados, promotores, defensores públicos nem juízes suficientes para atender às necessidades da população. O TJAM é um dos mais lenientes do Brasil, reconhecido nacionalmente por suas pataquadas e pelos cascudos que toma do CNJ em rede nacional.
Seus desembargadores são acusados de desídia (preguiça), são citados em operações federais contra corrupção, são corporativistas e alheios ao clamor popular e às vezes até à lógica. Tome-se o exemplo da cobrança do serviço de tratamento de esgoto em Manaus. Hoje, 17 de dezembro, nossos desembargadores decidiram manter a cobrança ilegal sobre bairros que não dispõem do serviço. A justificativa? Alegam nossos desembargadores que a interrupção da cobrança traria prejuízos à empresa, afetando, inclusive, as obras de implantação do serviço de esgoto!
Sim, você entendeu. O TJAM, conhecido pela desídia e pelos escândalos entendeu que é com a cobrança por um serviço que não é prestado que a empresa vai poder, um dia, prestar esse serviço. O contribuinte de Manaus, portanto, está pagando pelo que não tem para pagar as contas de uma empresa privada. Não é exercício de bruxaria imaginar que, denunciado novamente ao CNJ, o TJAM seja obrigado a tomar vergonha na cara em breve. Apenas para continuar no mesmo dia de hoje, o TJAM, que presta o terceiro pior serviço de justiça do país, decidiu adiar novamente, pela terceira vez, o julgamento do pedido de abertura de processo contra o deputado Nicolau, acusado de corrupção pelo MPE.
Manaus tem mesmo o sexto melhor PIB do país, segundo dados divulgados hoje pelo IBGE. Nosso governo estadual é o mais bem avaliado do Brasil, segundo pesquisa CNI-Ibope. Seria esquizofrênico demais esperar que, rica e satisfeita segundo números oficiais, Manaus deveria ter índices melhores em saúde, educação, acesso à justiça e saneamento básico?
Não é opinião, é dado. E eu mostro os links. Por que Manaus está entre as piores capitais em saneamento básico do país? Por que o Amazonas tem um dos piores índices de educação do Brasil? Por que um quinto dos municípios do Amazonas estão entre os piores IDHs do Brasil, que tem mais de 5.500 cidades? Por que a saúde do Amazonas é a sexta pior saúde do país?
São notícias e dados oficiais, a maioria divulgados por órgãos de governo, que nos apontam para a suprema falsidade denunciada por Slavoj Žižek em seu artigo zabelê-poioná em defesa dos intérpretes falsos do mundo. Enquanto nossas autoridades falam aos microfones, enquanto todos os canais e tevê e rádio reverberam o estado celestial em que vivemos; enquanto blogs e portais comemoram a grama verde, o céu azul e o ventinho do cair da tarde, os intérpretes de nossa realidade continuam lá, em silêncio, apenas mostrando dados que, comparados ao som que ouvimos, não fazem o menor sentido.
Poderíamos imaginar que, com índices educacionais tão medíocres, estamos precisando de professores de matemática no Amazonas.
Os índices de felicidade geral, porém, mostram o contrário. O que precisamos é prender o intérprete com a maior urgência possível.