Da Folhapress
SÃO PAULO – A assinatura do acordo de paz que pôs fim a duas décadas de hostilidades com a Eritreia rendeu ao primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, o Nobel da Paz de 2019.
Ao anunciar a premiação, nesta sexta-feira, 11, o comitê responsável pela honraria afirmou ter escolhido o premiê etíope devido aos “seus esforços em alcançar a paz e a cooperação internacional e em particular sua iniciativa decisiva para resolver o conflito com a vizinha Eritreia”.
“Me senti tão pequeno e emocionado quando ouvi a notícia”, disse Abiyh, em uma ligação telefônica com o comitê do Nobel.
“O prêmio também reconhece todas as partes que trabalham pela paz e reconciliação na Etiópia e nas regiões leste e nordeste da África”, acrescentou Berit Reiss-Andersen, a presidente do Comitê Nobel da Noruega, que fez o anúncio do vencedor, em Oslo.
Abiy é o líder mais jovem da África, com 43 anos. Ele chegou ao poder em abril de 2018 impulsionado por uma revolta popular com a promessa de democracia e reformas. Faz parte do grupo Oromo, o maior do país, que liderou os atos que obrigaram seu antecessor, Hailemariam Desalegn, a renunciar.
No cargo, cedeu à Eritreia um território fronteiriço disputado entre os dois países, movimento que levou à assinatura, em julho de 2018, do pacto de paz. O rechaço da Etiópia em conceder aquela área bloqueava as relações bilaterais permeadas por uma guerra que os opôs entre 1998 e 2000 e que deixou 80 mil mortos.
“A paz não surge apenas das ações de uma parte sozinha. Quando o primeiro-ministro Abiy estendeu a mão, o presidente Afwerki [Isaias Afwerki, da Eritreia] a agarrou e ajudou a formalizar o processo de paz entre os dois países. O comitê norueguês do Nobel espera que o acordo de paz ajude a trazer mudanças positivas para toda a população da Etiópia e da Eritreia”, acrescentou a porta-voz do prêmio.
Em comunicado divulgado minutos após o anúncio, o gabinete do premiê etíope afirmou que o prêmio é “um testemunho atemporal aos ideais MEDEMER (sic) de unidade, cooperação e coexistência mútua que o premiê sempre defendeu”.
“Medemer” é um termo da língua amárica (etíope), que remete à ideia de união, sugerindo reconciliação. Abiy “fez da paz, do perdão e da reconciliação políticas chave de sua administração” desde que assumiu o poder, prossegue o comunicado. “Estamos orgulhosos como nação”, publicou o gabinete de Abiy em uma rede social.
Alguns benefícios do acordo de paz, porém, tiveram vida curta. As fronteiras terrestres abriram em julho, mas fecharam em dezembro sem explicação oficial.
Para analistas, isso pode ter ocorrido porque o líder da Eritreia esperava que Abiy reprimisse com mais força o antigo governo, que travou a guerra e se recusou a aceitar a arbitragem internacional sobre a fronteira disputada.
Ex-militar especializado em inteligência cibernética, o premiê por vezes ignora ministérios para conseguir concretizar as reformas, que de outra forma ficariam presas em burocracias. Mas tal atitude gera críticas de culto à personalidade.
Essas reformas -dentre as quais se incluem o não-banimento de partidos políticos, a soltura de jornalistas presos e processos contra oficiais acusados de tortura- atraem multidões em comícios.
“Abiy parece ter confiado em seu governo carismático”, diz Dereje Feyissa, professor da Universidade de Addis Abeba. “A questão é se isso é sustentável. A euforia está diminuindo.”
Observadores dizem que as rápidas mudanças de Abiy são uma tentativa deliberada de atrapalhar oponentes do governo anterior, dominado por um grupo étnico pequeno, mas poderoso -os Tigrayans.
O primeiro-ministro etíope também já sobreviveu a uma tentativa de assassinato. Diante de milhares de pessoas reunidas na praça Meskel para um comício, Abiy acabava seu discurso e cumprimentava a multidão quando uma explosão aconteceu.
Uma granada lançada matou uma pessoa e deixou mais de 150 feridos no centro da capital Adis Abeba.
A Etiópia, cuja população é a segunda maior da África, está entre as economias de mais rápido crescimento do continente há mais de uma década.
Mas a incerteza sobre a capacidade de Abiy para realizar todas as reformas preocupa tanto os cidadãos quanto os investidores estrangeiros que ele vem cortejando para desenvolver os setores antiquados de telecomunicações e bancos do país.
O presidente da Somália, Mohamed Farmaajo, congratulou seu colega, afirmando que Abiy merecia ganhar o prêmio. O xeque dos Emirados Árabes Unidos, Tamim bin Hamad al-Thani, também disse que o prêmio é uma “honra merecida para um líder extraordinário”.
Para o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, Abiy “demonstrou que com paciência, coragem e convicção, a paz é possível”, enquanto para o secretário-geral da ONU, António Guterres, a liderança do etíope é “um exemplo maravilhoso” dentro e fora da África.
Já a Anistia Internacional adotou tom mais cauteloso, afirmando que o prêmio deveria motivar Abiy a lidar com os grandes desafios na área de direitos humanos que ameaçam reverter os ganhos conquistados até o momento.
Abiy é o 24º africano a ganhar o Nobel. Ano passado o prêmio foi para o congolês Denis Mukwege, por denunciar a violência sexual usada como arma de guerra.
Com o prêmio, Abiy receberá US$ 930 mil (R$ 3,79 milhões) e uma medalha de ouro. A cerimônia de entrega do Nobel acontece em Oslo, capital da Noruega, no dia 10 de dezembro, data que marca o aniversário de morte de Alfred Nobel, criador do prêmio.
Outros vencedores recentes incluem as liberianas Ellen Johnson Sirleaf e Leymah Gbowee em 2011, o egípcio Mohamed ElBaradei em 2005, o queniano Wangari Maathai em 2004, e o ganês Kofi Annan em 2001.
O Nobel foi concedido pela primeira vez em 1901. Inicialmente, eram cinco categorias: paz, literatura, química, física e medicina. Uma sexta -economia- foi adicionada décadas mais tarde, em 1969.
Até a metade do século 20, os vencedores da categoria paz eram “políticos ativos que procuravam promover a paz internacional, a estabilidade e a justiça por meio da diplomacia e de acordos internacionais”, explica a premiação.
Desde o fim da Segunda Guerra, o prêmio passou a reconhecer esforços nas áreas de desarmamento, democracia e direitos humanos.
Na virada para o século 21, o foco mudou para iniciativas que tentem limitar mudanças climáticas causadas pelo homem.
Entregue apenas a indicados vivos, o prêmio nasceu para cumprir o testamento do químico e inventor Alfred Nobel. O curioso é que, em vida, o sueco ficou conhecido por ter inventado um artefato utilizado em guerras: a dinamite.
Seu pai era dono de uma fábrica de explosivos em São Petersburgo, e foi lá que um jovem Nobel, com pouco mais de 15 anos, descobriu e se interessou pela nitroglicerina, elemento essencial do explosivo.
A descoberta não tinha o objetivo de ser usada em campos de batalha. A ideia inicial de Nobel era que o artefato lhe ajudasse em seu trabalho. Como engenheiro, construía pontes e prédios em Estocolmo, e a dinamite poderia implodir pedras para tal fim.
Ele patenteou a invenção nos EUA em 1867, quando tinha 34 anos. Nas décadas seguintes, fez disso um negócio lucrativo, e no final da vida era dono de 355 patentes, boa parte delas relativas a novas descobertas feitas a partir da dinamite.
Pouco antes de morrer de hemorragia cerebral, aos 63, deixou em seu testamento que 94% de seus ativos deveriam ser destinados à criação de um fundo para premiar iniciativas que ajudassem a humanidade.
Veja lista com os últimos dez vencedores do Nobel da Paz
2018: O congolês Denis Mukwege e a iraquiana Nadia Murad, que denunciaram a violência em relação a vítimas de violência sexual como arma de guerra
2017: Campanha Internacional para Abolir Armas Nucleares (Ican), por chamar a atenção para o risco de armas nucleares
2016: Juan Manuel Santos, ex-presidente da Colômbia que negociou o acordo de paz com as Farc
2015: Quarteto para o Diálogo Nacional da Tunísia, pela contribuição decisiva na construção de uma sociedade plural no país
2014: A paquistanesa Malala Yousafzai e o indiano Kailash Satyarthi, premiados pela defesa dos direitos das crianças e à educação
2013: Organização para a Proibição de Armas Químicas, sediada na Holanda, foi premiada por sua defesa da proibição de armas químicas
2012: A União Europeia, por mais de seis décadas promovendo os direitos humanos e a paz na Europa
2011: Ellen Johnson Sirleaf, Leymah Gbowee e Tawakkol Karman, premiadas pela luta não violenta pela seguranças das mulheres e por seu direito de participação plena em processos de paz
2010: Liu Xiaobo, ativista chinês premiado por sua luta longa e não violenta pelos direitos humanos em seu país
2009: Barack Obama, ex-presidente dos EUA, reconhecido por reforçar a diplomacia internacional e a cooperação entre as pessoas