
Da Folhapress
RIO DE JANEIRO – “A gente chora, porque a fila lá fora é grande”. O desabafo é de Eliana do Santos Lopes, que coordena uma cozinha comunitária no bairro Dom Almir, na periferia de Uberlândia, no Triângulo Mineiro. A alta do preço do gás de cozinha e de alimentos tem feito ONGs e entidades reduzirem o número de dias de preparo de marmitas para doação.
Há relatos ainda de porções sendo diminuídas ou de dias da semana cortados para cozinhar em Betim e Juiz de Fora, também em Minas Gerais, e em Curitiba, no Paraná. No Rio de Janeiro e em outros estados, doações de gás têm ajudado a não afetar o fluxo de doações.
Sete cozinhas comunitárias estão em atividade em Uberlândia desde meados de 2020. Juntas, chegaram a oferecer 4.000 refeições por dia, de segunda a sexta-feira. Três delas, porém, já pararam de funcionar às terças e quintas, devido à alta dos custos e à escassez de doações de alimentos.
“Hoje, o gás acabou e não tinha dinheiro para comprar. E muita gente esperava pela comida. Muitos sem café da manhã. Por sorte um rapaz filmou a nossa situação e postou nas redes sociais com o número do Pix para quem pudesse ajudar. Foi assim que compramos dois botijões”, conta Lopes. Na cozinha do assentamento Dom Almir, 18 voluntárias preparam 1.200 refeições.
No campo Glória, uma ocupação às margens da BR-050, que liga o Triângulo Mineiro ao Distrito Federal, Kawany Tupinambá coordena a cozinha comunitária que prepara 700 refeições por dia, porém agora só três vezes na semana.
“Ficamos vários dias sem arroz. Ontem, cozinhamos 15 quilos, mas precisávamos de 30 para atender a todos. Aumentou muito o número de pessoas em situação de rua que vêm comer aqui”, diz ela.
O principal doador no assentamento Santa Clara mandava 200 cestas básicas por mês, quantidade que caiu para 80 neste ano. Os armários estão vazios, conta Maria Aparecida Martins, a Cidinha, que entrega 350 refeições. “Vem muitas crianças sozinhas, que as mães vão trabalhar. Elas dependem da refeição”.
Dividir o estoque de arroz, feijão, óleo e macarrão entre as sete cozinhas comunitárias da cidade foi a forma encontrada para que a comida não fique ainda mais distante das pessoas em situação de fome.
“A situação está grave, e a demanda cresce a cada dia. Tem famílias que nos pedem desculpas por precisarem desse alimento. Elas não sabiam o que é a fome”, diz Maria Aparecida da Cruz, coordenadora da ocupação Maná, que utiliza fogão a gás e a lenha para garantir o preparo. “Mas até os doadores de lenha estão sumindo”.
Ovo em vez de carne
Em Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte, a alternativa é adaptar.
As cozinhas comunitárias sobrevivem de doações de alimentos e de gás. Cozinheiras e entregadores são voluntários fixos. Além de não receberem pelo trabalho, estão tendo que retirar dinheiro do próprio bolso para não prejudicar o fornecimento das marmitas.
Com a alta nos preços, as doações diminuíram. “A saída que encontramos, quando a coisa aperta muito, foi reduzir a quantidade de comida em cada marmita”, afirma Gillberto Francisco da Cruz, 58, um dos coordenadores da Ação Emergencial População em Situação de Rua. A entidade, que tem sede na região central da cidade, distribui 150 marmitas todas as noites para moradores de rua. Carros próprios são usados na entrega.
A entidade não tem apoio de governos. “Ontem mesmo [quarta, 12] tivemos que comprar gás às pressas. Estávamos fazendo a comida quando o botijão acabou”, diz Cruz. A compra foi feita por meio de uma vaquinha dos voluntários.
O coordenador conta que doações de itens como carne, feijão, arroz e mesmo gás caíram de forma considerável. “Não deixamos de fazer as entregas, mas no lugar da carne, por exemplo, usamos ovo e, às vezes, salsicha”.
Em Juiz de Fora, voluntários do projeto Fênix, que produz de segunda a sexta-feira entre 250 e 280 marmitas no almoço, todas entregues também à população de rua, criaram um grupo no WhatsApp para trocar informações sobre o preço da carne pela cidade.
Segundo Marcele Moraes, 44, uma das voluntárias do Fênix, as doações diminuíram. “Outro dia faltou óleo. Tirei dinheiro do meu bolso e comprei”. Em relação ao gás, a alternativa foi negociar com a revendedora do produto na cidade para conseguir um preço mais baixo.
Menos refeições
A queda nas doações e a alta do gás também afetam a ONG Itinerante Resistência, em Curitiba.
“No início da pandemia, chegamos a entregar mais de 3.000 refeições por semana e muitos kits de café da manhã. Neste ano, decidimos fazer em torno de 300 refeições semanais fixas, 600 kits de café da manhã”, disse a coordenadora da ONG, Tatiane Dorte.
As refeições itinerantes passaram a ser pontuais – exceto o café da manhã, servido aos fins de semana –, sendo ofertadas apenas em datas comemorativas, como Dia das Mães, em que cerca de 600 marmitas devem ser servidas.
Na Páscoa, o grupo tem a intenção de, em parceria com a Igreja Anglicana e a Pastoral do Povo de Rua, entregar 300 kits com café, chocolate e salada de frutas de forma itinerante pela cidade.
Dorte afirmou que a alta nos preços cria uma escalada de problemas. “Todo o trabalho é voluntário, então, se sobe a passagem, os voluntários que vêm de ônibus já começam a reduzir os dias de colaboração. Se a gasolina aumentar, também reduzem os dias que vão para a rua”.
No Rio de Janeiro e em outros estados, uma das ações que têm ajudado a mitigar o impacto do aumento do preço é da própria Petrobras. A empresa implementou um programa que tem como uma das suas frentes a doação de verbas para a compra de botijões por ONGs que alimentam pessoas em situação de rua ou vulnerabilidade.
É o caso da Gastromotiva, que recebeu R$ 500 mil para suas cozinhas comunitárias espalhadas pelo Brasil, lideradas por microempreendedores, cozinheiros, lideranças locais e organizações sociais. Foram beneficiadas 77 delas, em 16 municípios dos estados do Amazonas, Bahia, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo.
O projeto também doa o “auxílio gás” para famílias que vivem em comunidades no entorno das operações da companhia e que são atendidas por instituições nacionais que realizam campanhas de arrecadação de comida. A previsão é destinar R$ 300 milhões e atingir até 4,2 milhões de pessoas, direta e indiretamente, até o fim deste ano.