
Por Felipe Campinas, do ATUAL
MANAUS – Apontada como uma solução à dependência do Brasil de fertilizantes de outros países, a exploração do potássio em Autazes, na Região Metropolitana de Manaus, esbarra em questões legais, ambientais e sociais. A expectativa inicial era extrair 227 milhões de toneladas de material em aproximadamente 31 anos, mas a sobreposição à terra indígena Jauary, delimitada em 2012, travou o empreendimento.
Para resolver o entrave, a Potássio do Brasil, empresa responsável pelo projeto, fez alterações no plano e reduziu a área a ser explorada, retirando a interferência naquela área indígena. Com a mudança, o tempo de extração do minério foi reduzido para 23 anos. Para a empresa, o problema foi resolvido, mas, para o MPF (Ministério Público Federal), há questões pendentes.
Na mesma região há outra terra indígena, a TI Soares e Urucurituba, que não está demarcada, mas é ocupada há mais de um século pelos indígenas da etnia mura, segundo o MPF. A Potássio do Brasil não reconhece essas comunidades porque elas não foram mapeadas pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).
A terra indígena Soares e Urucurituba está na área de influência do empreendimento, e isso tem impedido a continuação do projeto. Atualmente, por ordem judicial, a Funai realiza os trabalhos de demarcação do território.
Em razão de questões relacionadas aos direitos indígenas, o processo de licenciamento é complexo e, consequentemente, demorado, e faz com que os defensores da exploração mineral tentem acelerá-lo driblando a legislação.
No caso de Autazes, há tentativas de “atropelo” ao processo de licenciamento com divergências sobre o órgão competente para autorizar o empreendimento, e acusações de assédio a indígenas para aprovação do projeto.
A questão tem dividido os próprios indígenas Mura. Alguns são contra e outros a favor. Na última quinta-feira (30), um grupo favorável à exploração do minério promoveu protesto em frente ao prédio do MPF, na zona centro-sul de Manaus. Eles exibiram placas nas quais afirmam que são “maioria”.
O potássio é essencial para o agronegócio brasileiro, mas o Brasil produz apenas 5% (cerca de 500 mil toneladas) do que precisa. A produção ocorre na mina de Taquari-Vassouras, que abrange os municípios de Carmópolis, Santa Rosa de Lima e Rosário do Catete, no estado de Sergipe. Para atender à demanda, o país importa, por ano, cerca de 10 milhões de toneladas do minério de países como o Canadá, Rússia, Belarus e Alemanha.
De acordo com os estudos de impacto ambiental da Potássio do Brasil, a mina em Autazes tem área de 130 quilômetros quadrados entre os rios Amazonas e Madeira. Com o volume extraído no Amazonas, a empresa prevê a produção de 20% do potássio consumido no Brasil.

As instalações industriais da Potássio do Brasil serão erguidas em uma área localizada a 19 quilômetros de distância, em linha reta, da cidade de Autazes, que fica nas margens do Rio Madeirinha.
A empresa, no entanto, pretende levar o produto, por estrada, a um porto na vila Urucurituba, na margem esquerda do Rio Madeira. A empresa vai asfaltar a estrada que já existe. O porto fica a 24 quilômetros da Foz do Rio Madeira, entre Manaus e Itacoatiara.
“A estrada existente, que liga a Vila de Urucurituba ao Lago do Soares, será reformada para o uso da população e do transporte do fertilizante de potássio da planta de extração e beneficiamento até o porto flutuante na margem esquerda do rio Madeira”, informou a Potássio do Brasil, ao ATUAL.
No local do empreendimento, a empresa irá retirar a rocha silvinita (composta pela halita, que é o cloreto de sódio, conhecido como sal de cozinha, e pela silvita, que é o cloreto de potássio, a matéria prima do fertilizante). O minério está a cerca de 800 metros de profundidade. A silvinita será tratada para que se transforme em fertilizante.
As instalações não ficarão dentro das comunidades indígenas, mas a atividade vai afetar áreas em que eles coletam frutos, extraem castanha, caçam e pescam, conforme apontou uma inspeção judicial realizada no dia 29 de março de 2022.
Além das questões ambientais, o empreendimento tem impactos sociais, como o estímulo à prostituição e ao uso e tráfico de drogas, segundo os próprios estudos da Potássio do Brasil.

Projeto travado
As terras onde vivem os Mura, que estão na área de impacto do empreendimento, não estão demarcadas. É isso que, atualmente, tem travado o licenciamento do empreendimento.
A Funai criou, em agosto deste ano, após ordem judicial, um grupo técnico para fazer a delimitação. A medida é necessária para confirmar as terras indígenas que são impactadas com a exploração do minério.
Conforme a Justiça Federal, somente após a demarcação, a autorização do Congresso Nacional, a consulta aos povos indígenas e a o licenciamento é que a empresa poderá operar na região.
Todas as etapas do licenciamento estão sendo acompanhadas pela Justiça no âmbito de uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal.
Em agosto deste ano, a juíza Jaiza Fraxe reforçou a necessidade da delimitação.
“Com a constituição do grupo técnico responsável para levantar dados, documentos e atos tendentes a delimitar a TI Aldeia Soares e Urucurituba, fica clara e de forma contundente a necessidade de cumprimento dos requisitos legais, constitucionais e convencionais (Conv. 169), dando-se concretude ao bloco de constitucionalidade”, afirmou Fraxe.
A empresa afirma que “mais de 90% do povo Mura aprovou o Projeto Potássio Autazes, conforme as regras definidas previamente, no Protocolo de Consulta do Povo Mura de Autazes”. Sustenta, ainda, que “qualquer exigência fora das regras estabelecidas é descabida chicana para alterar o resultado e interferir, de forma indevida, na vontade dos indígenas”.
“Os ataques ao processo de escolha dos indígenas não passam de mais uma manobra para produzir um escândalo artificial contra a extração de potássio em Autazes”, disse a empresa.
Potássio ‘na marra’
Em meio ao demorado processo de licenciamento da exploração, a Justiça Federal tem “freado” diversos atos considerados irregulares pelo MPF, como o licenciamento “na marra”, sem autorização do Congresso Nacional e sem consulta a povos indígenas, pelo Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), órgão estadual.
Em 2015, o Ipaam emitiu a Licença Prévia nº 054/2015, em que autorizou os estudos de viabilidade ambiental do empreendimento. A licença, no entanto, foi suspensa em fevereiro de 2017, após o MPF ajuizar a ação civil pública para anular o licenciamento pelo Ipaam. O MPF entende que cabe ao Ibama emitir o licenciamento ambiental e não ao Ipaam, por envolver impactos em território indígena.
A suspensão foi decida em acordo entre a empresa e o MPF e vale até o término da consulta ao povo indígena Mura.
A Potássio do Brasil, no entanto, defende que o Ipaam é o órgão competente para licenciar o projeto porque o empreendimento “está 100% fora de terras indígenas”.
“O Projeto Potássio Autazes da Potássio do Brasil está 100% fora de Terras Indígenas e tem firme compromisso em trazer um empreendimento para Autazes com o que há de mais moderno em termos de tecnologia, sem esquecer dos cuidados com as pessoas e com o meio ambiente”, informou a empresa.
Ignorando a presença dos indígenas da terra indígena Soares e Urucurituba, a companhia também diz que tem apoio de 90% do povo Mura. A empresa se refere aos indígenas das terras indígenas Paracuhuba e Jauary, que estão a 8 quilômetros do local das instalações da empresa.
“A Potássio do Brasil tem como princípio respeitar as normas ambientais e os direitos dos povos indígenas e tradicionais e reconhece a importância da decisão de 90% do Povo Mura apoiar o Projeto. Lembrando que o Povo Mura tem suas terras a cerca de 8 km de distância das futuras instalações industriais do Projeto Potássio Autazes”, comunicou a Potássio do Brasil.
“As Vilas de Soares e Urucurituba não estão dentro das Terras Indígenas mapeadas pela Funai quando do pedido do Termo de Referência para a elaboração do Estudo do Componente Indígena do Projeto Potássio Autazes”, completou a empresa.
Entre 2017 e 2018, houve a elaboração e planos ambientais e sociais e elaboração do protocolo de consulta Mura (aprovado em 2019). O documento foi denominado “Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Careiro da Várzea, Amazonas”.
A consulta aos indígenas começou em 2019, mas foi suspensa em 2020 em razão da pandemia de Covid-19.
De lá pra cá, a Justiça Federal também tem combatido denúncias de ameaças e assédios a indígenas para “venda” das terras.
Em setembro de 2022, o MPF acusou a empresa de coagir indígenas para aprovarem o projeto. Conforme o MPF, há vários elementos que configuram a existência de pressão e coação irregulares pela empresa e prepostos para a desocupação indígena em Autazes.
Um dos indígenas ouvidos pelo MPF afirmou que “nasceu nessa terra e que não quer sair dela, onde tem agricultura, mas que já está cercado pelos lotes vendidos”. Outro habitante de 83 anos informou ter recebido várias visitas de pessoas que supostamente representavam a Potássio do Brasil com o objetivo de comprar as terras em que vivia. Um desses representantes foi insistente e chegou a dizer que o indígena “tem que vender” e que, se não vender, “o senhor vai perder”.
Ainda segundo o relato do indígena ancião, o suposto representante da empresa disse que, caso não seja vendida, a área não servirá para plantio. “Não vai mais prestar para plantar a maniva, não vai prestar para plantar o cará. Nem batata e nem banana, porque a terra vai secar e não presta. E daí, se o senhor teimar, o governo vai dar o despejo para vocês”.
Questionada pela reportagem, a Potássio do Brasil informou que realizou pagamentos para as lideranças indígenas do Careiro da Várzea e de Autazes dentro do processo através de depósitos judiciais com a devida liberação da Justiça Federal em várias parcelas para o Povo Mura executar o protocolo de consulta.
“Toda e qualquer movimentação financeira, realizada pela Potássio do Brasil, tendo beneficiários indígenas, foi realizada judicialmente, através de depósitos na conta bancária da Justiça”, disse a empresa.
A Potássio do Brasil comunicou, ainda, que todos os benefícios socioeconômicos e ambientais previstos para os indígenas e para os não indígenas no âmbito do Projeto Potássio Autazes “são declarados publicamente”.
Indígenas divididos
Nos dias 21 e 22 de setembro deste ano, um grupo de indígenas Mura realizou, na aldeia Terra Preta da Josefa, uma assembleia para aprovar um novo protocolo de consulta e aceitar a continuidade do projeto Potássio Autazes.
Dias após a assembleia, o presidente do CIM (Conselho Indígena Mura), José Cláudio, entregou ao governador do Amazonas, Wilson Lima, uma ata e relatório de uma reunião. O encontro teve a participação de representantes da Potássio do Brasil, deputados e secretários estaduais, e foi amplamente divulgado pelo Governo do Amazonas.
Após tomarem conhecimento da reunião, indígenas das aldeias Moyray, Murutinga Tracajá, Igarapé Açu e Ponta das Pedras divulgaram quatro cartas nas quais afirmam que não concordam com o posicionamento favorável à continuidade do projeto Potássio Autazes aprovado em assembleia. Eles afirmam que a decisão foi tomada de forma muito rápida.
“Muitas lideranças e parte de comissão das aldeias foram ludibriadas e assinaram a ata da reunião como presença e não para aprovação ao projeto ou a outro caso que venha afetar o povo Mura”, diz uma carta da aldeia Moyray, divulgada dias após a reunião.
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No último dia 16 de novembro, a juíza Jaiza Fraxe suspendeu imediatamente o procedimento de licenciamento ambiental, a consulta realizada de forma irregular e qualquer avanço nos trâmites para a implantação do empreendimento da empresa Potássio do Brasil em Autazes.
A decisão teve como base o agravamento das irregularidades, a partir de uma série de violações, falsas promessas, ameaças e cooptações dos povos indígenas, inclusive de lideranças Mura, e de servidores/gestores públicos por prepostos e pelo próprio presidente da empresa Potássio do Brasil.
Fraxe também multou em R$ 1 milhão a empresa Potássio do Brasil por pressionar indígenas a autorizar o empreendimento.
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A Potássio do Brasil informou que está recorrendo da decisão judicial.
Impactos
Apesar de ser aprovada por uma parte dos indígenas, a exploração do potássio em Autazes tem sérios riscos às comunidades.
Em novembro de 2022, a empresa MRS Estudos Ambientais elaborou um relatório em que separa os impactos da atividade em Autazes em três tipos: físicos, bióticos e socioeconômicos.
A empresa foi contratada pela Potássio do Brasil após a publicação do Plano Nacional de Fertilizantes, do governo federal. O programa foi elaborado em 2021, no governo Bolsonaro, para acabar com a dependência do Brasil aos fertilizantes de outros países, como Canadá e Rússia. A medida ocorreu em meio à guerra entre Rússia e Ucrânia, que afetou a venda de fertilizantes para o Brasil.
O estudo indica que o projeto Autazes “atende aos requisitos de boas práticas ESG [requisitos de Meio Ambiente, Social e Governança] aplicados ao mercado, sendo necessária uma avaliação e manutenção constantes dos procedimentos e práticas de gestão para as etapas de implantação, operação e fechamento do empreendimento”.
Entretanto, em relação à questão social, entre os problemas que poderão ser gerados está o estímulo à prostituição e ao tráfico de drogas em comunidades indígenas da região, com a chegada de trabalhadores de outras localidades. Há, ainda, a projeção de pressão sobre serviços públicos utilizados pelas famílias indígenas.
O EIA (Estudo de Impacto Ambiental) e o Rima (Relatório de Impacto Ambiental) do Projeto Autazes, apresentado ao Ipaam em 2015, reforçam que as comunidades indígenas estão na área de impacto do empreendimento. Eles também apontam a prostituição e a droga como problemas sociais.
O documento tem o seguinte teor: “Em todas as etapas do projeto haverá uma significativa interação entre os segmentos populacionais externos, vindos de outras localidades e regiões, e os segmentos populacionais do próprio município. Dentre as diversas modalidades de interações possíveis, onde múltiplas se firmam como importantes oportunidades experienciais para os agentes sociais envolvidos no processo interativo, inclusive no campo do conhecimento, das referências culturais e da afetividade, colocam-se aquelas que podem resultar em problemas sociais, culturais, éticos e individuais. Neste campo, coloca-se o estímulo à prostituição e ao uso e tráfico de drogas, inclusive no segmento composto por crianças e adolescentes”.
De acordo com os estudos, esses problemas decorrem de diferenças entre as condições econômicas, de vida e culturais da população local e dos trabalhadores provenientes de outros lugares.
“Uma importante assimetria a ser destacada é a composição da população externa que, sobretudo na fase de implantação do empreendimento, tende a ser composta majoritariamente pelo segmento masculino. Este fator causa uma elevada concorrência pela população feminina local promovendo sua “sobrevalorização” e, paralelamente, maximizando as pressões sobre ela exercidas, inclusive as que podem culminar na prostituição”, diz trecho do estudo.
Esses fatores são capazes de estimular a “mercantilização do corpo” e o aumento do uso de drogas, “um problema experimentado pelo município, sendo responsável por parte das ocorrências e ações policiais”, conforme diz o relatório.
Nova matriz
Por outro lado, atividade é apontada como uma das novas matrizes econômicas do Amazonas. É defendida pela Prefeitura de Autazes, pelo Governo do Amazonas, pelo governo federal e por parlamentares.
Em fevereiro deste ano, a assessoria da secretaria-executiva do Ministério da Agricultura afirmou em documento que a exploração de potássio na Amazônia pode suprir o mercado nacional em até 50% num longo prazo.
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O empenho pela viabilização do empreendimento em Autazes ganhou força principalmente após o início da guerra na Ucrânia, iniciada em 2021. A importação foi afetada em razão das sanções da União Europeia à Bielorrússia, que não tem ligação com o mar e usava o porto de Klaipeda, na Lituânia, para enviar os insumos ao Brasil.
Em maio deste ano, o desembargador José Amilcar Machado, do TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), em Brasília, atendeu a um pedido do governo federal, que alegou “nefastas consequências” na demora na implementação do Projeto Autazes, e revogou uma decisão que proibia a concessão de licenças sem prévia autorização judicial para a Potássio do Brasil.
A decisão, no entanto, não liberou imediatamente o licenciamento, que ainda está sendo discutido no âmbito judicial.
Na última segunda-feira (27), a exploração do minério foi debatida na CPI das ONGs, coordenada pelo senador Plínio Valério (PSDB-AM). A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, prestou depoimento.
Plínio disse que os indígenas Mura não estão na área do projeto. “Lá em Autazes, os Mura, mesmo hoje, o projeto não está dentro da área indígena, mesmo eles pedindo a ampliação, não está reserva indígena, a mina que eles vão explorar. O potássio, hoje, supriria 23% a 25% do que o Brasil precisa. Em seguida, você tem Silves e Itacoatiara, que vai 50%, daria mais de 100% do que o Brasil precisa”, afirmou Plínio.