A crise causada pelo coronavírus despertou a consciência de que o Estado deve assumir as suas responsabilidades sociais, configurando-se como uma instituição de defesa da vida e garantidora dos direitos fundamentais da pessoa e da natureza. Entre as prerrogativas sociais de todos os brasileiros, a Constituição Federal estabelece os direitos à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados. Infelizmente, as últimas décadas têm demonstrado que o Estado tem se esquivado destas importantes responsabilidades.
No Brasil, a partir dos anos 1990, houve uma forte incorporação das políticas neoliberais, que apostam todas as fichas na economia de mercado. O discurso neoliberal preconiza que o mercado é o grande promotor do bem-estar dos indivíduos, por isso todos os esforços devem ser feitos para que ele esteja livre de qualquer regulamentação e que o papel do Estado deve se restringir ao mínimo possível, não realizando qualquer interferência na sociedade. No entanto, no terreno da prática, estas políticas têm beneficiado generosamente aos banqueiros e grandes empresários, contribuindo para uma forte concentração de riqueza nas mãos de alguns seletos grupos sociais. O Estado tem promovido desigualdade e injustiça social.
Não é difícil encontrar estudos que mostram que nas últimas décadas as desigualdades sociais cresceram de forma assustadora. Para ficarmos somente no Brasil, estudos da Fundação Getúlio Vargas mostram que a desigualdade está crescendo no Brasil, registrando aumentos persistentes em 2019. Segundo a Fundação, enquanto a renda da metade mais pobre da população caiu cerca de 18%, somente o 1% mais rico teve quase 10% de aumento no poder de compra. Ainda de acordo com a Fundação, apenas entre 2015 e 2017 a população vivendo na pobreza expandiu 33%, passando de 8,45% para 11,2% dos brasileiros.
Em 2019, houve redução do número de beneficiários do Programa Bolsa Família, programa de transferência de renda focado em crianças e famílias abaixo das linhas de extrema pobreza e pobreza. Por conseguinte houve um aumento na fila das famílias que buscam por assistência através do programa. Assim, processou-se um aumento de 3,4 milhões de novo pobres extremos (FGV Social).
A população que vive na linha de pobreza contabiliza mais de 1,8 milhão de pessoas no Amazonas, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O índice representa 47,9% da população amazonense. O levantamento do Instituto apontou ainda que a pobreza extrema aumentou no Amazonas. Em 2016, a população amazonense que vivia na extrema pobreza era 13,8%. Já em 2017, este índice aumentou para 14,4%.
A ampliação da pobreza reflete as opções dos governos que evitam investir em políticas públicas, deixando grandes segmentos de pessoas no desamparo. Esta opção do Estado pode ser vista claramente na falta de investimentos em serviços essenciais como saúde, educação, moradia e saneamento básico. Medidas como a PEC do Teto de Gastos (aprovada por Temer e reforçada por Bolsonaro), que reduzem o investimento nestes setores essenciais, deixam as populações pobres ainda mais vulneráveis, sujeitas às crises econômicas e sanitárias.
O efeito bombástico causado pela crise do coronavírus nos meios populares constitui uma oportunidade de percebermos o equívoco das teorias e políticas neoliberais, que prejudicam os mais pobres, beneficiando os mais ricos. É hora de percebermos que o Estado deve reassumir suas obrigações, implementando políticas públicas que promovam o acesso universal aos direitos sociais.
As tragédias humanitárias e ecológicas, cada vez mais frequentes, sinalizam que o capitalismo contemporâneo agride fatalmente o ser humano e à natureza, tornando a sociedade uma organização insustentável. Ao perceber esta realidade, somos convidados a exigir uma mudança radical na postura das instituições e autoridades públicas, demandando mais responsabilidade para com a vida humana e o planeta. É preciso perceber que a lógica individualista que pauta o capitalismo neoliberal produz iniquidades e coloca em risco a própria sociedade, sendo necessária uma ação decidida do Estado visando estabelecer um nível aceitável de civilidade e de justiça socioambiental.
Esta orientação é confirmada pelo professor de economia Andrea Fumagalli, segundo o qual o enfretamento da pandemia da covid-19 requer um Estado que crie condições de bem-estar e promova a reapropriação coletiva dos bem comuns, que estão cada vez mais controladas pelos grandes banqueiros e empresários. É necessário que se tome consciência da importância da saúde pública e do Estado de bem-estar universalista (Instituto Humanitas Unisinos, 28 de abril de 2020).
É importante que se perceba que a crise que vivemos hoje tem raízes mais remotas. As políticas neoliberais que reduzem drasticamente o poder de reação do Estado perante os mazelas sociais precisam ser corrigidas. Trata-se de interromper, imediatamente, os processos de privatização de empresas públicas, ampliar significativamente os gastos públicos em setores vitais para a população, implementar de forma eficiente políticas sociais de proteção em situações de adversidade (doenças, velhice, desemprego), alterar a postura predatória em relação à natureza, proteger as minorias vulneráveis e defender intransigentemente os direitos fundamentais do ser humano.
É necessário retornarmos ao principio segundo o qual “o Estado está a serviço do interesse comum” e reafirmarmos a prioridade dos mais vulneráveis e desprotegidos na agenda das políticas públicas. Perante um contexto de capitalismo neoliberal esta perspectiva não passa de um sonho remoto, mas talvez a gravidade da crise que atravessamos nos lance em mergulhos profundos de humanidade e nos acenda a consciência da inadiável valorização da vida humana e não humana.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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