No dia 9 de julho o Fórum das Águas de Manaus promoveu uma live onde se discutiu o problema do desrespeito à lei da tarifa social da água em Manaus. Na live, que tinha como mediador Sandoval Rocha, deram os seus depoimentos Vanda Ortega, membro da Associação dos Witoto do Alto Solimões e Rubem Siqueira, assessor da Comissão Pastoral da Terra.
A tarifa social da água em Manaus foi instaurada em 2015, mas com muita resistência da parte dos órgãos gestores e da empresa privada de plantão, pois só foi decretada oficialmente 8 anos depois de ter sido assegurada na lei 11.445/2007. Além de demorar bastante, este benefício ainda não contempla todas as famílias que dele têm direito. De 130 mil famílias inscritas no Programa Bolsa Família (critério de recebimento), somente 26.850 recebem tal benefício, segundo os últimos dados do Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS 2018).
Trata-se de uma flagrante violação do direito humano à água e ao saneamento, reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 28 de julho de 2010. Tal violação afronta diretamente o propósito da ONU de garantir o acesso universal à água e ao saneamento para as populações economicamente mais vulneráveis. Nos 10 anos do direito humano à água e ao saneamento não há muito o que celebrar.
Não estamos falando do único caso de desrespeito na concessão privada do abastecimento de água e esgotamento sanitário em Manaus. O não cumprimento das metas do contrato de concessão constitui uma prática corriqueira desde o ano 2000. Ao longo deste período, são múltiplos os processos impetrados contra as empresas de água e esgoto, documentados no Ministério Público do Estado, no Tribunal de Justiça e na Câmara dos Vereadores. Esta última, por exemplo, já chegou a recomendar a quebra do contrato de concessão por duas vezes em diferentes ocasiões: CPI 2005 e CPI 2012.
Os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário de Manaus estão entre os piores das grandes cidades brasileiras. Como sempre, o SNIS 2018 revela que Manaus obtém um péssimo desempenho nestes serviços, quando se considera indicadores como a cobertura de água, a cobertura de esgoto, o desperdício, os gastos em investimentos e o preço médio da tarifa cobrada aos consumidores.
Os participantes da live corroboraram a precariedade dos serviços prestados pela concessionária Águas de Manaus (controlada pelo grupo Aegea Saneamento e Participações), sugerindo que a iniciativa privada, por visar primeiramente o lucro, não se interessa pelo bem comum, mas procura extorquir as populações e inviabilizar a implementação da tarifa social para os mais pobres. Na sua ânsia por lucrar, as empresas privadas consideram tudo como mercadoria, destituindo a água e o ecossistema de sua sacralidade. Tudo é coisificado.
Esta racionalidade economicista é aprofundada pelo Projeto de Lei nº 4.162/19, que incentiva a privatização dos serviços de água e esgotamento sanitário, prejudicando muitos que têm direito à tarifa social. Esta lógica, portanto, inviabiliza a universalização do acesso à água e ao saneamento, comprometendo os objetivos da UNO, quando reconheceu este direito para todos os seres humanos.
Numa época de pandemia em que todos são chamados a serem mais solidários e gratuitos para com aqueles que mais sofrem, o PL 4.162 vai na direção oposta, colocando o controle da água nas mãos de grandes empresas que visam o lucro e condicionam o acesso a este bem essencial ao pagamento de elevadas tarifas. Trata-se da lógica do capital, que recebe um impulso gigantesco do governo federal, das casas legislativas, em detrimento das populações mais pobres.
Os participantes da live lembraram, no entanto, que há experiências concretas em Manaus e em todo o Brasil, que visam minar esta lógica e criar um sistema mais sustentável e justo baseado na organização comunitária e democrática. Em Manaus, mencionaram o caso do bairro Colônia Antônio Aleixo, que não permitem a entrada da empresa privada, mas realizam comunitariamente a gestão da água, permitindo o acesso a todas as famílias da localidade.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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