Por Gerfran Carneiro Moreira *
Quase nenhuma palavra tem estado mais presente no meu pensamento recente do que distopia.
Poderia ser simplesmente porque vivemos um momento raro e grave (ainda que não propriamente inédito) da existência humana. Poderia ser só por causa da incógnita que nos domina a cada nova manhã, da dúvida sobre, afinal, quando tudo isso vai acabar.
Há dias nos quais dedico alguns momentos a questionar o que existiria de incompreensível nas operações matemáticas fundamentais, nas leis da física, nas imposições naturais da biologia, da química, da astronomia… E notem: fiz referência apenas àquilo que existe de mais “objetivo” no conhecimento humano até hoje conquistado. Embora não se deva nunca desprezar a poesia de Caetano, dois e dois – para a aritmética – continuam sendo quatro.
Imaginei, uns três meses atrás, que seria simples entender que, se há um vírus cuja disseminação é de nível comprovadamente alto, isto é, que uma pessoa contaminada facilmente o transmitiria a outras cinco, dez, vinte, trinta pessoas, evitar contato com essas muitas pessoas seria necessário para conter a onda viral.
Também pensei que as pessoas compreenderiam o que o médico sempre nos diz quando recebemos o diagnóstico de virose: não há remédio, tome esse analgésico; se complicar, volte aqui pra avaliar se há alguma bactéria oportunista etc. Muitas vezes até fazemos pilhéria com isso: “o médico não sabe, diz que é virose”…
Às vezes, claro, complica mesmo. A garganta infecciona, você desidrata, tem falta de ar, tem de tomar antibiótico ou ser internado pra tomar soro. Acontece.
Recebi nesses dias, pra acrescer à longa fila de leitura, a trilogia de romances distópicos do Ignácio de Loyola Brandão. Abri o de publicação mais recente para cumprir o ritual próprio dos bibliófilos: folhear e cheirar o brinquedo novo, que ou será usado para brincadeira imediata ao lado dos antigos ou vai ficar na estante esperando a vez, nesta ou noutra encarnação. No protocolo dos adictos, me deparei com o seguinte: “acaba de ser eleito o primeiro presidente da república robô do universo, que substituiu uma geração de presidentes celebrizados pela ausência de coração, fenômeno científico raro e ocorrido apenas nesta nação, para orgulho de todos nós” (Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela, p. 312).
Ora, não fosse bastante a “distopia mundial” do comércio fechado, aviões no solo, praias vigiadas, amores separados, aulas em Google meet, Flamengo sem jogar etc, ainda somos submetidos ao governo dos robôs. Pior, nossos robôs aparentam algo mais estranho que a falta de coração: eles têm corações! Mas são perversos e insensatos. Eis que, num dia de abril de 2020, com o novo coronavírus em ação global, na república do Ignácio – azaradamente a minha e a dos meus leitores –, presidente e ministros se reúnem por duas horas para falar de quase tudo, mas quase nada da pandemia. Teria ficado brasileiramente satisfeito se eles tivessem proferido duzentos palavrões: “vamos nos unir pra c… nessa guerra, fazer a p… do isolamento social, ajudar as empresas e os trabalhadores a não se f…, mandar o COVID t.n.c. e a pandemia pra p.q.p.”! Maravilha! Governo empenhado em vencer o inimigo do momento! Mas não, na distopia só pensavam em desrespeitar as leis, ofender pessoas, atentar contra o meio ambiente – para ficar em alguns tópicos apenas.
Só nos sobrará o vento, e olhe lá.
* Juiz do Trabalho e professor universitário