Por Soraia Joffely, do ATUAL
MANAUS – O número de indígenas que cometem suicídio é maior do que entre não indígenas, principalmente nos estados do Amazonas e Mato Grosso do Sul, mostra pesquisa inédita da Fiocruz e da Universidade Harvard. Os casos envolvem jovens entre 10 e 24 anos e os dados coletados são referentes ao período de 2000 a 2020.
O estudo intitulado “Suicídio entre povos indígenas no Brasil de 2000 a 2020: um estudo descritivo” mostra que as taxas de mortalidade, por suicídio, entre os povos indígenas variaram entre 8,53 por 100 mil no ano de 2001 e 22,04 em 2017.
Para Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz Amazônia e coautor do estudo, o aumento na mortalidade precoce de indígenas está ligado à precariedade das condições de vida dessa população.
“Nosso estudo avaliou o grupo etário de 10-24 anos onde se concentra o maior risco de suicídio entre indígenas no Brasil. Na população geral do Brasil, por exemplo, o grupo de maior risco ao suicídio, historicamente, é o de idosos. Precisamos lembrar que devido as precárias condições de vida e saúde dos indígenas, a mortalidade precoce é quase uma regra. Isto, entre outros fatores, torna os jovens os mais vulneráveis ao suicídio indígena”, disse o pesquisador ao ATUAL.
A investigação demonstra ainda que em 20 anos o Amazonas se manteve com altas taxas de suicídio entre os povos originários. Mato Grosso do Sul mostrou diminuição nas ocorrências. Em 2018, as taxas de suicídio entre indígenas nestas regiões chegaram a 73,75 por 100 mil habitantes.
Em 2023, no período de janeiro a 30 de junho, conforme dados da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena), foram registrados 60 mortes por suicídio entre indígenas. Somente na região Norte, foram notificados 40 óbitos por autoprovocação.
De acordo com a pesquisa, a faixa etária mais jovem apresentou a maior taxa de mortes por suicídio, com números que chegaram a um mínimo de 12,77 por 100 mil em 2001, e um máximo de 33,8 por 100 mil ano de 2015. Entre as vítimas, destaca-se o perfil do sexo masculino, solteiros (67,9%) e com ensino fundamental (26,9%).
No contexto de variáveis que atingem os indígenas, muitos são sociais, ambientais e étnicos. Estudos antigos também apresentam a perda da identidade indígena e o aumento da ocorrência de violência sexual como principais causas que contribuem para o maior número de suicídios entre os jovens.
“Os efeitos de políticas públicas que visam a garantia do usufruto de territórios ancestrais tendem a ser favoráveis, pois limitam ou até mesmo eliminam tensões e preocupações graves e até mesmo existenciais de muitos indígenas. No entanto, esses efeitos não surtem efeito imediato e são insuficientes para repensar e ampliar a prevenção do suicídio indígena, pois há outros aspectos sociais, culturais e até mesmo psicológicos que precisam ser considerados”, explicou Jesem Orellana.
Além disso, a renda, acesso à oportunidades econômicas e o aumento do uso de bebidas alcoólicas também foram relatados como fatores relacionados às altas taxas de suicídio nos povos indígenas.
Em 2020, o Dajirn (Departamento de Adolescentes e Jovens Indígenas do Rio Negro) divulgou carta de manifesto com a Juventude Indígena do município de São Gabriel da Cachoeira (a 850 quilômetros de Manaus) para exigir providências emergenciais para combater o uso de drogas, álcool e violência no município.
A segunda cidade mais indígena do Brasil, conforme o censo de 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), liderou em 2014 como o município com maior taxa de suicídios e homicídios por 100 mil habitantes no país.
De acordo com o Mapa da Violência elaborado pela Secretária-Geral da Presidência, São Gabriel da Cachoeira registrou um indíce de suicídio de 51,2 por 100 mil habitantes em 2012, onde 75% das vítimas indígenas foram de jovens entre 15 e 29 anos.
O psicólogo e técnico de atenção psicossocial e promoção do bem-viver da Sesai, Matheus Cruz, diz que o Ministério da Saúde vem avançando quanto à prevenção do uso de álcool pelos povos originários.
“Quando um usuário apresenta um quadro de uso prejudicial do álcool ou algum familiar traz essa queixa ao profissional de saúde, busca-se realizar uma escuta desse usuário. E se possível, elaborar um projeto terapêutico singular com esse usuário, que envolve, inclusive, a relação com a rede de atenção psicossocial, para que esse usuário, se possível, faça um acompanhamento no Caps (Centro de Atenção Psicossocial). Nós temos em alguns lugares como em São Gabriel da Cachoeira, um pajé que faz parte do CAPS”, disse o indigenista.
Segundo o psicólogo, também existe um esforço da pasta para garantir a qualificação de profissionais de saúde na atuação da linha de cuidado à prevenção do suicídio indígena. No entanto, nem todas as universidades preparam os profissionais para essa dimensão cultural, o que torna o trabalho mais complexo.
“O profissional de saúde quando entra na saúde indígena, o cenário ideal seria que ele já tivesse uma formação intercultural. Isso não quer dizer que ele tem que saber a cultura do povo com quem ele vai trabalhar, mas que ele tenha uma formação intercultural ou o mínimo de atuação com povos indígenas. Logo, o conhecimento de vivência daquela cultura é fundamental no exercício das atividades de cuidado de todos os usuários e de um cuidado coletivo da comunidade”, enfatizou.
A pesquisa da Fiocruz foi baseada no censo demográfico do IBGE, mas para Jesem Orellana quem deveria fazer um monitoramento preciso e especializado desse óbitos é a Sesai. Nesta questão, a pasta afirma que várias etnias indígenas não têm quantitativo populacional de 100 mil. Então, analisa-se por Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena), que é a divisão administrativa da secretaria.
“Nós trabalhamos com um sistema específico, que é o Sistema de Atenção à Saúde Indígena, que é só da Sesai, onde atendem a população que reside nas terras indígenas. Ou seja, nós não atendemos toda a população indígena que está no Brasil. Porque nem todos estão residindo nas terras indígenas. Temos muito indígenas que residem em área urbana. Assim, nós temos a previsão de elaborar até o fim do ano um boletim específico”, ressaltou Matheus Cruz.
A luta pela demarcação de terras também influencia na saúde mental dos indígenas. Para a psicóloga Geana Baniwa, da etnia Baniwa, o debate sobre conflitos relacionados a disputas pela posse, ocupação e exploração da terra é urgente para proporcionar qualidade de vida aos indígenas. Segundo Geana, a falta de solução desses conflitos interfere na segurança de alguns direitos básicos como o direito à terra.
“Nós falamos em Bem-Viver Indígena, e quando nos referimos a isso, estamos dizendo que existem fatores essenciais para que haja o Bem-Viver, e uma delas, e digo até que é a principal, é a questão territorial. Sem terra, nós indígenas não temos como ter a nossa roça, viver com a nossa família, manter as nossas práticas tradicionais, rituais. A terra faz parte da gente, e estamos em completo sintonia com ela”, explicou.
Geana Baniwa também defende a qualificação de profissionais de saúde indígena para a prevenção do suicídio nessa população, uma vez que isso melhorará a qualidade de atenção ao usuário.
“A falta de conhecimento étnico pode acarretar na invisibilização e desconsideração do seu modo de vida. Que na verdade pode ser trabalhada em conjunto com os próprios conhecimentos tradicionais e trazer bons resultados. Sempre digo que não é simplesmente levar uma psicologia para o povo indígena e sim construir “as psicologias” no sentido plural, pois são muitos povos em nosso país, com suas especificidades”, destacou.
Psicologia nas aldeias
A Portaria nº 2, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, estabelece diretrizes para o desenvolvimento de ações de atenção integral à saúde mental dos povos indígenas. Conforme o anexo 3, é necessário garantir que o Programa de Formação Permanente de Recursos Humanos absorva, especialmente em regiões com grande concentração de comunidades indígenas, a problemática da saúde mental indígena e os agravantes como o alcoolismo, o suicídio e outros problemas prevalentes.
Para atender as necessidades sanitárias das aldeias e comunidades originárias, a Sesai é responsável por coordenar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas a fim de proteger, promover e recuperar a saúde dos povos indígenas por meio do Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena). No Brasil, são 34 distritos divididos estrategicamente por critérios territoriais, respeitando a ocupação geográfica das comunidades indígenas.
A psicóloga comunitária Rafaela Palmeira, que atua há 12 anos na Amazônia brasileira e dois anos no Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Solimões, afirma que para combater o aumento expressivo de suicídio é necessário considerar a diferença étnica e cultural dos povos.
“O tema do suicídio entre povos indígenas é bastante complexo porque é influenciado por muitos fatores. É preciso considerar as particularidades de cada etnia, sua visão sobre a vida e a morte, o Bem Viver e sobre o suicídio, para compreender esse aumento e buscar estratégias para enfrentar essa questão de forma particular em cada território”, disse Rafaela.
Atuante no município de Amaturá (a 907,70 quilômetros de Manaus), a psicóloga relata que os jovens indígenas e demais faixa etárias ainda sofrem com o contato de não indígenas.
“Na área do município de Amaturá estão presentes povos que vivem em intenso contato com a sociedade não indígena, e tem uma história de significativas violências fruto desse contato, historicamente. Os jovens experimentam bastante preconceito no contato com não indígenas, e também enfrentam algumas dificuldades de acesso, por exemplo, ao ensino técnico e superior, a trabalho e renda, fortalecimento cultural”, completou.
Também reforça sobre o consumo e vendas de bebidas alcoólicas, uma vez que culturalmente a população indígena faz uso de produtos tradicionais, mas são afetados pela inclusão de elementos da cultura branca e urbana.
“O processo de alcoolização entre povos indígenas é ao mesmo tempo causa e consequência de um conjunto de situações. É importante entender como a bebida alcoólica foi introduzida para cada etnia, e qual significado ela passou a ocupar na dinâmica social daquele povo. Muitos fazem uso de bebida tradicional em contextos específicos, em celebrações e rituais, e as bebidas destiladas foram introduzidas em outros contextos, esvaziando esses significados”, explicou.