Por Felipe Campinas, do ATUAL
MANAUS – Projetadas pelo arquiteto Lúcio Costa, autor do plano piloto de Brasília, três casas do poeta amazonense Thiago de Mello em Barreirinha (município a 330 quilômetros de Manaus), cidade natal dele, estão abandonadas há anos, segundo a filha do poeta, Isabella Thiago de Mello. Fotografias registradas no fim de junho pelo fotógrafo Valter Calheiros mostram o abandono.
Desde 2013, tramita no Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) um procedimento para tombamento dos imóveis. “O processo está na última instância, em Brasília. Agora, com o novo governo federal, temos a certeza de que, finalmente, a proteção chegará”, afirmou Isabella, que é produtora e roteirista, em entrevista ao ATUAL.
As fotografias mostram as marcas do abandono dos lugares que um dia foram inspiração para o autor de obras que ganharam o mundo. Antes de falecer, em janeiro de 2022, aos 95 anos, o autor de “Os Estatutos do Homem” (Chile, 1964) lutou para preservar as casas que são consideradas como únicas obras de Lúcio Costa na Amazônia.
O Porantim do Bom Socorro, localizado na Rua Terra Preta do Castanhal, bairro São Judas Tadeu, está totalmente abandonado. É um espaço com um casarão de três andares construído com madeira itaúba e Sucupira e uma área para reuniões ao ar livre. O local também tinha uma biblioteca, batizada de “Moronguetá”, que foi demolida pela prefeitura.
Conforme Isabella, o espaço foi construído nos anos de 1978 e 1979, depois que Thiago voltou do exílio político na Europa. Ele ganhou os projetos arquitetônicos de Lúcio Costa. “Ele decide não mais viver no Rio de Janeiro (onde viveu desde seus 14 anos) e passa a morar no Amazonas, no pequeno munício onde nasceu, na fazenda de cacau de seu avô Gaudêncio, em Barreirinha”, disse.
O Porantim foi vendido para o Governo do Amazonas em 1992, antes de Thiago viajar para o Chile, onde atuou como adido cultural da embaixada do Brasil. Isabella relata que o governo repassou, via comodato, o espaço para a prefeitura, com a promessa de preservar a arquitetura de Lúcio Costa e de dar finalidade cultural às casas, mas houve modificações na estrutura.
“Os funcionários públicos da época fecharam varandas e janelas, construíram paredes de cimento onde não existiam, colocaram azulejos que imitam o calçadão da Praça do Largo e de Copacabana, e por fim, demoliram a Biblioteca Moronguetá onde papai escreveu [os livros] ‘Amazonas, Pátria da Água’, ‘Amazônia, A Menina dos Olhos do Mundo’, ‘Manaus, Amor e Memória”, disse Isabella.
Outro imóvel abandonado, batizado de Casa da Frente, está localizado na avenida Espanha, na orla da cidade, às margens do Paraná do Ramos. A casa foi construída em 1996 e funcionou como residência do poeta após ele retornar do Chile. Hoje, o local está vazio, sem portas e janelas, com marcas de abandono.
De acordo com Isabella, em 2008, Thiago vendeu o imóvel para a prefeitura do município após se separar da esposa, a professora Aparecida Gory Maia. Em 2013, após a prefeitura ameaçar demolir a casa e outros imóveis na orla pra expandir o porto da cidade, Thiago e a filha recorreram ao Iphan para preservar a estrutura e conseguiram embargar a obra.
Na ocasião, a Superintendência do Iphan no Amazonas considerou a necessidade de realizar estudos arqueológicos no local em razão da possibilidade de haver vestígios arqueológicos e sambaquis (cemitério indígena) na região. O instituto também considerou ser necessário salvaguardar a arquitetura de Lucio Costa e morada de Thiago de Mello.
Em Barreirinha, há uma terceira casa construída pelo poeta, a Casa da Poesia, localizada no Distrito de Freguesia do Andirá, às margens do Rio Andirá. Ela foi erguida no mesmo ano da construção da Casa da Frente, na orla de Barreirinha. Conforme Isabella, foi o único imóvel que permaneceu sob os cuidados da família de Thiago.
“A única casa que meu pai não vendeu para o Estado e a Prefeitura de Barreirinha é a casa de praia do Andirá. Essa é a única que é propriedade particular do poeta, e que agora é nossa, dos filhos. Em 2021, meu irmão mais novo conseguiu recursos através de uma vaquinha on-line e a restaurou”, afirmou Isabella.
Tombamento
O processo de tombamento dos imóveis, intitulado “Conjunto Arquitetônico de Lucio Costa em Barreirinha, Amazonas/AM”, foi uma iniciativa do próprio poeta Thiago de Mello, que faleceu em janeiro de 2022. Ele a filha foram à Superintendência do Iphan no Amazonas após a prefeitura ameaçar destruir a Casa da Frente para construção de um porto na orla da cidade.
“O início do tombamento, a preservação do patrimônio teve início exatamente por esta ameaça de destruição por parte da própria prefeitura. Com a graça de Deus, a arquiteta Sheila Campos leu reportagem publicada pelo jornal Acrítica e embargou a obra que iria demolir todo o casario da Rua da Frente para ampliar o porto”, disse Isabella.
Em 2017, após o processo chegar na última instância do Iphan, a Ufam (Universidade Federal do Amazonas) enviou ofício aos 16 membros do conselho do instituto pedindo a conclusão do procedimento, em comemoração aos 80 anos do instituto, que tem Lúcio Costa como um dos fundadores. O documento foi assinado pelo reitor Sylvio Puga e por Thiago de Mello.
“Infelizmente, [o processo] ‘As casas do Poeta Thiago de Mello, únicas obras de Lucio Costa na Amazônia’ não entrou para a pauta de decisão naquele ano pelos conselheiros”, afirmou Isabella. Em 2018, com a entrada do presidente Jair Bolsonaro, o processo ficou parado no instituto. Agora, no governo Lula, a filha do poeta tem esperança que as casas sejam, finalmente, tombadas.
“Agora, com os novos ares e com o retorno do Ministério da Cultura do Governo Lula, temos a certeza, de que finalmente, o processo 1799 da preservação das Casas do Poeta Thiago de Mello & Lucio Costa no Amazonas, será deferido, homologado, finalizado de uma vez por todas”, afirmou Isabella.
Ainda de acordo com a filha do poeta, há outro processo de tombamento a nível estadual. “Muitos bens materiais são preservados por lei, tanto pela esfera federal (pelo Iphan), e/ou pelo Estado, e/ou pela prefeitura. Pará, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, no Brasil todo tem exemplos de vários bens tombados pela federação e pelo estado”, afirmou Isabella.
Manifestação
No fim de junho deste ano, alunos e professores da Escola Estadual Professora Maria Belém, de Barreirinha, promoveram, no Porantim do Bom Socorro, um ato pela preservação do local. De mãos dadas, eles formaram um círculo ao redor do casarão. Uma aluna recitou o “Faz escuro mas eu canto”, um dos versos de Madrugada Camponesa (1965), de Thiago.
O fotógrafo Valter Calheiros, que é ativista ambiental, participou e registrou imagens do ato. Ele conta que viajou a Barreirinha após receber, no Musa (Museu da Amazônia), em Manaus, a visita de alunos do município. Na ocasião, ele questionou os estudantes sobre os imóveis do poeta e foi informado que as casas estavam abandonadas. Foi quando decidiu ir à cidade.
“Dois meses depois, indo para Parintins, peguei uma lancha e fui embora para Barreirinha. Fui lá, visitei a escola, falei com o diretor, com os professores e com os alunos. A gente foi visitar Porantim. Fizeram um sarau”, afirmou Calheiros. Ele divulgou as fotos do encontro nas redes sociais dele. Para ver mais fotos, clique aqui.
Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Barreirinha informou que “o Governo do Estado do Amazonas é o responsável pelas casas do poeta Thiago de Mello”. A reportagem solicitou informações do governo estadual e do Iphan, mas até a publicação desta matéria nenhuma resposta foi enviada.
Veja mais fotografias de Valter Calheiros:
- Casa da Poesia, no Rio Andirá
- Casa da Frente
Não deixe que seja destruído uma obra que um dia todos foram felizes em cada uma das casas. Caso queira alguém pra tomar de conta. Eu mesma aceitaria.