Há poucos dias tive a honra de participar, na condição de arguidora, da Dissertação de Mestrado da pesquisadora Maria Inah de Almeida Freitas apresentada ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade do Estado do Amazonas – PPGICH/UEA, como requisito final para obtenção do título de mestre em Ciências Humanas (Teoria, História e Crítica da Cultura).
Digna de uma nota nesta conceituada coluna, o brilhante estudo contou com a orientação da professora doutora Lúcia Marina Puga Ferreira e com a arguição também do professor doutor Ernesto Renan Melo de Freitas Pinto, importantes referenciais da Sociologia na Amazônia. Com o criativo título ‘de vivências e conversas: o protagonismo feminino na migração venezuelana’, o texto dissertativo articula a leveza da arte e a beleza das mulheres, com uma mistura de sonhos, sofrimentos, lágrimas e esperanças nos itinerários migratórios de um grupo de venezuelanas em Manaus.
Psicóloga de formação, Maria Inah confere ao estudo a capacidade de escutar as narrativas das migrantes e sistematizar suas perspectivas sobre os diversos processos de deslocamento e suas implicações. O ponto central do estudo é a identificação do protagonismo destas mulheres que vêm na migração a única alternativa de sobrevivência para si e suas familias.
Na primeira parte do texto a pesquisadora recorda que “durante os séculos passados, as mulheres foram ocultadas das pesquisas e produções acadêmicas. Diante do contexto migratório, as mulheres migrantes também foram vítimas desse movimento de exclusão e invisibilidade histórica. Apenas na década de 1980, acompanhando a ascensão de movimentos feministas que fundaram análises e reflexões a partir da perspectiva de gênero, foi que se tornou possível desenvolver pesquisas e trabalhos acadêmicos, trazendo à luz a importante presença das mulheres nas diferentes circulações migratórias”.
Boa parte do estudo está dedicado a aprofundar a temática da feminização das migrações internacionais. É um tema complexo que exige uma observação profunda de toda a conjuntura migratória e suas implicações para as mulheres que, via de regra, se deslocam ou são deslocadas junto com filhos pequenos e com a responsabilidade de produzir condições materiais para o sustento do núcleo familiar e enviar remessas para parte da família que continua na origem do deslocamento ou em outros itinerários migratórios.
Para a autora, a feminização da migração “é fruto dessa ruptura com a ciência patriarcal e androcêntrica que emerge como um processo de quebra de paradigmas, o qual promove a construção de uma epistemologia, utilizando, como fundamento, a perspectiva de gênero”. E explica que sua metodologia “de natureza qualitativa e de abordagem etnográfica, foi desenvolvida utilizando-se da feminização das migrações internacionais como ponto de partida, a fim de demonstrar o protagonismo de um grupo de mulheres venezuelanas diante dos desafios impostos pela realidade migratória na cidade de Manaus”.
O lugar de fala das participantes da pesquisa é a praça do Teatro Amazonas, lugar histórico da cidade de Manaus, referencial turístico e carregado de memórias de processos políticos e econômicos que marcaram a história da Amazônia. Um marco da neocolonização da região, é ressignificado neste estudo transformando-se num lugar de libertação. Durante quase dois anos a praça transformou-se numa referência de encontro de um grupo de migrantes que se reunia periodicamente com a psicóloga em rodas de conversa que faziam circular as narrativas das trajetórias migratórias e da produção de sonhos e projetos de superação.
A praça do Teatro Amazonas é tão significativa para o estudo que tornou-se inspiração para a arte da capa da dissertação assinada pelo artista Alziney Pereira e intitulada ‘Encontro entre hermanas’ que poderá ser admirada e apreciada quando da publicação da dissertação na página do PPGICH/UEA (http://www.pos.uea.edu.br/cienciashumanas/). A beleza da arte, dentre outros detalhes, centra-se no abraço coletivo de mulheres de diversas origens sociais, culturais, econômicas e políticas, reunidas pela migração num mesmo espaço de realinhamento de histórias cruzadas.
Com a mesma profundidade, a autora adentra no aprofundamento da temática migratória “fundamentada segundo a perspectiva de gênero”, um ramo das teorias contemporâneas baseada na descolonização da ciência que permite incluir ao texto as falas das participantes da pesquisa no mesmo nível dos recortes das grandes teorias. As narrativas, enquanto método libertário, foram coletadas, de acordo com a autora, “por meio de entrevistas, diário de campo e observação participante. Nesse contexto, fizemos o recorte das principais dificuldades que mais apareceram nas narrativas das participantes, as quais tornaram visível o protagonismo dessas mulheres, sendo elas: dificuldade de inclusão dos filhos das participantes na rede pública de ensino, inserção laboral, má remuneração, condições insalubres, para aquelas que trabalham de forma autônoma e não autônoma, e obstáculos encontrados em relação à regularização migratória”.
Os resultados da pesquisa reúnem diversos fragmentos da vida cotidiana destas mulheres que inventaram, de forma ativa e criativa, alternativas ao desemprego, à negação da cidadania, à xenofobia, ao machismo e a tantas formas de violência enfrentadas desde o início de seus processos migratórios. Desafios que elas já viviam antes da migração e que se acentuarem ou se tornaram mais complexos a partir dos deslocamentos.
A autora conclui que, “que, apesar dos obstáculos descritos serem parte do cotidiano das colaboradoras, o protagonismo diante dessa questão é real e potente. Elas possuem um papel ativo na cidade de Manaus, movimentam a economia, criam estratégias efetivas tanto de inserção laboral, quanto para resolver demandas relacionadas à regularização migratória, além de apresentarem uma grande potencialidade para criar e manter redes migratórias, além de realizar objetivos por meio dessas redes de mulheres”.
Outra conclusão igualmente importante apresentada pela autora refere-se aos processos de resiliência das migrantes. A autora observa que “elas passavam por privações, o relato de abandono de ex-maridos e companheiros apareceu no discurso de 90% das entrevistadas, mas, apesar das dificuldades, elas não se eximiram da tarefa de contribuir com outras mulheres, oferecendo apoio emocional e até mesmo financeiro, na ausência de dinheiro, elas se articulavam para compartilhar comida, dividir a moradia e trabalhar de forma colaborativa”.
Parabenizo a autora e sua orientadora por brindar às ciências humanas esta preciosidade para as ciências humanas, para os estudos migratórios, com ênfase à temática da feminização das migrações. E reafirmo a importância da continuidade destes estudos em nível doutoral e em outras modalidades de aprofundamento destas chaves que abrem novas portas para a produção do conhecimento na Amazônia.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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Blá, blá, blá, blá… Nunca ouvi tanta conversa fiada!! E agradeça meu comentário. Ninguém comenta aqui.