As empresas privadas cobram as tarifas de água mais caras da Amazônia e do Brasil. Na Amazônia, fazem parte deste ranking da exploração a Aegea Saneamento e Participações e a canadense Brookfield. A primeira atua em Manaus/AM através da Concessionária Águas de Manaus. Segundo o Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS-2017), para uma família adquirir 10 m³ de água potável em Manaus ela tem que pagar, em média, R$ 56,30.
O grupo Brookfield, que atua em Palmas/TO através da BRK Ambiental, cobra uma média de R$ 51,00 por cada 10 m³ de água potável. Esta empresa, depois de privatizar os serviços de água e esgoto de 125 municípios de Tocantins, devolveu para o Estado os 77 que não geravam retornos econômicos para os empresários. Além dos 77 municípios, o Estado passou a atender também as áreas rurais, pois estas igualmente não interessam à iniciativa privada. A empresa se manteve na parte urbana de 48 municípios, entre eles os mais populosos, onde as receitas são mais robustas.
Ao contrário do que foi prometido às populações, a privatização tem produzido serviços de qualidade medíocre. Citando o exemplo de Manaus, os serviços de abastecimento de água das periferias da cidade são caracterizados pela precariedade: intermitência, abastecimento parcial (inferior a 24 horas) ou a ausência total do abastecimento.
Muitas áreas da cidade são simplesmente ignoradas pela empresa, com o explícito apoio do poder público. São as áreas invisíveis, onde os seres humanos ali estabelecidos não são reconhecidos como tais, pois não têm o dinheiro que os possibilite entrar no mercado da água. São os excluídos da cidade, da cidadania e do sistema de abastecimento de água.
Os serviços de esgotamento sanitário de Manaus constituem o exemplo mais representativo da tragédia da gestão privada do saneamento. A concessão, que já se estende por 20 anos, oferece estes serviços para apenas 12,5% da cidade (SNIS-2017). Trata-se de uma verdadeira afronta à saúde pública e uma agressão contra a mais incipiente sensibilidade ambiental. Os danos aos nossos rios e igarapés são incontestáveis.
Diante desta situação observada em vários países do mundo, não é por acaso que o Papa Francisco na sua encíclica Laudato Si (2015) alerta para o perigo de se privatizar a água potável. Nesta que é a sua mais famosa encíclica, ele lembra que “alguns estudos assinalaram o risco de sofrer uma aguda escassez de água dentro de poucas décadas, se não forem tomadas medidas urgentes. Os impactos ambientais poderiam afetar milhares de milhões de pessoas, sendo previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme numa das principais fontes de conflitos deste século” (nº 31).
A escassez da água se acirra também pelas práticas poluidoras, tão comuns nos centros urbanos. Ao comentar sobre a poluição das águas no planeta, oPapa Francisco afirma que “em muitos lugares, os lençóis freáticos estão ameaçados pela poluição produzida por algumas atividades extrativas, agrícolas e industriais, sobretudo em países desprovidos de regulamentação e controles suficientes. Não pensamos apenas nas descargas provenientes das fábricas; os detergentes e produtos químicos que a população utiliza em muitas partes do mundo continuam a ser derramados em rios, lagos e mares (nº 29)”.
Diante desta escassez mundial da água, o Papa se apressa em externar a sua preocupação pelas soluções que o sistema neoliberal tem oferecido, colocando a gestão da água nas mãos de empresas que priorizam o lucro e ignoram as necessidades das populações mais pobres. Nesse sentido, Francisco alerta que “enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado” (nº 30).
O preço da água tem aumentado em várias partes do mundo depois de sua privatização. Levando em consideração a atual crise econômica que atravessa o Brasil, principalmente as regiões norte e nordeste, os elevados preços da água geram sérias preocupações, pois excluem os setores sociais mais pobres do acesso a um bem essencial para a vida, colocando em curso uma flagrante violação do direito humano à água e ao saneamento. Em sociedades com altos níveis de desigualdades como a brasileira, entregar a gestão da água potável nas mãos de empresas privadas, que visam expandir cada vez mais os seus lucros, representa um grave retrocesso civilizacional.
Vários países já estão se dando conta de que a privatização da água não é o melhor caminho a ser seguido. Por conta dos altos preços e dos maus serviços prestados a população, muitos países voltaram atrás na privatização de suas empresas. Segundo o Transnational Institute, entre 2000 e 2017, foram quase 900 serviços reestatizados no mundo. Em torno de 83% dos casos mapeados aconteceram de 2009 em diante. Na Alemanha, nas duas últimas décadas, 348 empresas voltaram a ser estatais. Os Estados Unidos reestarizaram 150 empresas que haviam sido privatizadas. Aqui no Brasil, a cidade de Itu, em São Paulo, passou por uma reestatização. Depois de dez anos enfrentando o aumento de tarifas, o sucateamento de equipamentos e grave racionamento de água, o sistema de saneamento básico da cidade voltou a ser público.
Não é sem motivo que a palavra água foi citada quarenta e sete vezes pelo Papa Francisco na encíclica Laudato Sí. Isso mostra a preocupação do Papa e a importância dada por ele à água como elemento sagrado e essencial para manter a vida. A encíclica nos convoca a proteger a sacralidade da água, tão sagrada que simboliza o sacramento do batismo para católicos e vários outros credos. Esta encíclica nos chama a tomar uma atitude para que a água se torne um direito para todos os seres do planeta. A experiência de Manaus mostra que a transformação da água em mercadoria a tornará um privilégio somente para os que podem por ela pagar.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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