Por Ricardo Balthazar, da Folhapress
SÃO PAULO – Um dos formuladores do Plano Real, que derrubou a hiperinflação nos anos 1990, o economista André Lara Resende passou a ser tratado por muitos de seus pares como um estranho no ninho depois que se tornou um crítico ácido do pensamento econômico convencional.
Para ele, episódios dramáticos como a crise financeira internacional de 2008 e a pandemia do coronavírus mostraram que até países como o Brasil têm condições de se endividar para financiar seus gastos em certas situações sem perder o controle sobre a economia.
Ele volta à carga em “Camisa de Força Ideológica”, que chegou às livrarias nesta sexta (3). É o quinto de uma série de volumes em que critica os pressupostos de seus colegas ortodoxos e defende sua revisão. Mais conciso, é também o mais acessível para o público leigo.
O economista considera equivocada a decisão do Banco Central de elevar as taxas de juros para segurar a inflação, que no ano passado ultrapassou a meta definida pelo governo, e defende a retomada de investimentos públicos como saída para reerguer a economia.
Lara Resende tem mantido contato com assessores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em caráter informal, e reuniu-se recentemente com o ex-governador Geraldo Alckmin (PSB), que será o vice da chapa petista na campanha presidencial deste ano.
Coordenador de um núcleo de especialistas no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), o economista elaborou um conjunto de propostas de política econômica que deverá ser apresentado em breve como contribuição do grupo para o debate eleitoral.
Pergunta – O que há de errado com o pensamento econômico no Brasil?
André Lara Resende – A teoria macroeconômica está sendo revista no mundo há pelo menos uns dez anos, mas no Brasil houve uma radicalização do dogmatismo, a ideia de que a boa política macroeconômica se resume a equilibrar o orçamento público em todas as circunstâncias.
P – Mesmo depois da pandemia, quando o governo aumentou despesas e contornou o teto de gastos para enfrentar a crise sanitária?
ALR – No Brasil, só se defende esse modelo. Basta ler os jornais. O curioso é como conseguem justificar essa postura e defender simultaneamente o aumento da taxa de juros pelo Banco Central em 12 pontos percentuais em seis meses, que faz crescer a despesa com a dívida pública. Isso significa transferência de renda para os detentores da dívida pública, que são os agentes superavitários da economia. É uma política profundamente concentradora, e uma incongruência espantosa. A responsabilidade fiscal é muito importante, mas está mal definida.
P – O teto de gastos ainda tem sentido?
ALR – Sou a favor de teto para despesas correntes, especialmente as de pessoal. Um teto para a totalidade das despesas, excluído o serviço da dívida, como temos hoje, é insensato. Ele não conteve as despesas correntes, nem as demagógicas, mas espremeu o espaço para investimentos.
A economia não funciona sem investimentos públicos, em infraestrutura, educação, saúde, segurança. Eles são complementares aos investimentos privados e viabilizam grande parte deles. Mas o teto estrangulou completamente a capacidade do Estado de investir.
P – O sr. diz no livro que “a desconfiança elitista e tecnocrática em relação aos políticos na democracia representativa impede a revisão do quadro institucional”. Os erros de sucessivos governos e a história do país não justificam essa desconfiança?
ALR – Não sei se o Brasil é excepcional nisso. Em todo lugar do mundo existe o problema do mau uso dos recursos públicos, o mau uso da poderosíssima faculdade do Estado de criar crédito. Esse mau uso é um perigo permanente, que deve ser regulado de forma competente.
Mas não se consegue restringir o mau uso dos recursos públicos simplesmente com leis e restrições formais. Nisso o Estado funciona como uma empresa. Se for composto por pessoas essencialmente corruptas, não adianta você ameaçar, impor restrições e punições.
P – Ao enfatizar a ausência de restrição financeira para emissão de dívida pelo governo, o sr. não acaba sugerindo que não há limite nenhum?
ALR – Claro que existem limites. A relação da dívida com o PIB obviamente não pode ir para o infinito. Mas o poder que o Estado tem de criar crédito pode ser bem usado, o que ocorre quando o retorno do investimento feito é superior ao custo do crédito que o financiou.
Não existe um limite numérico que deva ser respeitado. Países ricos têm hoje dívidas superiores a 100% do PIB. Em determinadas circunstâncias, como guerras e pandemias, o endividamento é necessário para impedir uma tragédia. É o que vimos com a Covid.
É possível revertê-lo quando a economia se reorganizar e voltar a crescer. Agora, se você usar o crédito de forma descontrolada, para políticas demagógicas e gastos sem retorno nenhum, em termos de produtividade ou de bem-estar, aí sim estará sendo irresponsável.
P – O livro discute a necessidade de maior coordenação entre a política monetária, a cargo do Banco Central, e a política fiscal. A maior autonomia conferida pela legislação brasileira ao BC prejudica essa coordenação?
ALR – Essa organização institucional de um Banco Central independente, que não pode comprar dívida pública, funcionou bem no século passado, mas está ultrapassada e se tornou disfuncional. Ela tem que ser repensada e estamos elaborando uma proposta sobre isso.
P – A campanha eleitoral abre espaço para uma revisão da política econômica como a que o sr. propõe?
ALR – Os que estão em busca de uma terceira via não têm projeto. Na economia, continuam agarrados a chavões neoliberais e se apresentam como alternativa à direita bolsonarista, como representantes do verdadeiro neoliberalismo. Assim não se chegará a lugar nenhum. Precisamos de um projeto para a retomada do desenvolvimento no século 21. Ele não virá da obsessão neoliberal, que se tornou completamente ultrapassada, nem com o desenvolvimentismo do século 20. Os desafios que precisamos enfrentar são novos e enormes.
Há a questão ambiental, a necessidade de repensar a energia para nos livrarmos de combustíveis fósseis, a busca por maior inclusão social. A revolução tecnológica, que traz ganhos de produtividade, mas desestrutura o emprego. Essa é a discussão a ser feita.
Raio-X
André Lara Resende, 71 anos
Formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio, é doutor em economia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA. Foi diretor do Banco Central no governo José Sarney, assessor especial do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Trabalhou no mercado financeiro por mais de 30 anos. Publicou antes “Consenso e Contrassenso” (2020) e “Juros, Moeda e Ortodoxia” (2017), ambos pelo selo Portfolio Penguin.