SÃO PAULO – Ela morreu em 2003, aos 70 anos, mas esteve muito presente durante 2015. Nas telonas, com o polêmico documentário What Happened, Miss Simone?, dirigido por Liz Garbus; nas manifestações e conflitos raciais envolvendo negros e brancos nos Estados Unidos, com destaque para o de Baltimore, em que Freddie, de 25 anos, preso em 12 de abril passado, morreu sete dias depois, sob custódia da polícia. E agora é a musa do recente CD Nina Revisited, lançado no Brasil em dezembro.
Em comovente texto no encarte, Angela Davis, a “pantera negra” e ativista dos direitos humanos e da luta contra a discriminação racial nos anos 1960, lembra que Nina Simone foi a primeira a colocar a questão de gênero nesses movimentos. Era a única mulher a participar tocando e cantando de uma manifestação pública em Los Angeles no mítico ano de 1968 em protesto contra a prisão de Huey Newton.
“Representando as mulheres silenciadas e compartilhando seu incomparável gênio artístico, ela personificou a democracia revolucionária que ainda não tínhamos aprendido a imaginar.” Três anos depois, Nina visitou Angela, presa. Levou-lhe um balão vermelho, evocado na capa do CD.
Ainda adolescente, aos 17 anos, Nina dizia ter sido impedida por causa da cor de estudar piano no templo de ensino da música clássica em 1951, o Curtis Institute, na Filadélfia. Levou sua paixão por Bach para o blues e o jazz, construindo uma música tão pessoal e própria – no piano e na voz de inflexões e timbre inconfundíveis – que se torna quase impossível realizar com qualidade um tributo à sua arte.
Ainda bem que sua filha, Lisa Simone, hoje com 53 anos, também cantora, teve a decência de só ocupar 4 minutos do CD, com uma curtíssima vinheta de introdução, My Mama Could Sing, e uma versão opaca de I Want a Little Sugar in My Bowl.
Melhor
Deu espaço para a excepcional Lauryn Hill. Em seus 40 anos, ela domina o tributo, com cinco performances. Sua voz não chega ao requinte do fraseado e das modulações de intensidade em sílabas da mesma palavra, como fazia Nina. Mas Hill nem se preocupa com isso. Ela tem mesmo afinidades com sua musa. Feeling Good deixa rolar uma lágrima de saudade por Nina; em I’ve Got Life, ela enfia um rap de modo perfeito; e, em Ne Me Quitte Pas, não compromete. Seus momentos mais raros são, sem dúvida, duas obras-primas de Nina: Black is The Color of My True Love’s Hair, emoldurada por um arranjo suntuoso; e a linda Wild is the Wind, de Dmitri Tionkim, mago das trilhas sonoras de Hollywood, em arranjo mais minimalista, com direito a ecos eletrônicos sutis.
Há outros grandes momentos, como o clássico reggae Baltimore, de Randy Newman, gravado por Nina em 1978, aqui numa roupagem mais robusta de Jasmine Sullivan, 28 anos. A mais radical, e por isso mesmo ótima pelos versos agudos – tanto do ponto de vista musical, citando Coltrane e outros artistas, mas também pelo recado político -, é a do rapper Common, ao lado dos superagudos límpidos de Lalah Nathaway. Ele cita o famoso Mississippi Goddam de Nina e atualiza as maldições: “Ferguson, goddamned/ Staten Island, goddamned/ Baltimore, goddamned”.
Se fosse possível ficar com apenas uma faixa, essa seria I Put a Spell On You, que Nina chamou, num célebre show em Montreux, de versão em inglês de Ne Me Quittes Pas, de Edith Piaf. A autora da proeza é Alice Smith, 37 anos. A incrível guitarra de Chris Sholar faz os comentários precisos às inflexões lancinantes de Alice declarando seu amor; até os vocais de apoio soam certinho. Robert Glasper acerta em cheio neste arranjo em que tudo é visceral… como Nina. Se a saudade dela apertar, o remédio é este: ouça cinco vezes a última faixa, em que a própria Nina canta e toca I Wish I Knew How It Would Feel To Be Free, registro de 1972.
Estadão Conteúdo/ATUAL