Por Allan Gomes, especial para o AMAZONAS ATUAL
MANAUS – “Agora eu só dou entrevista dentro de presídio”. Foi dessa forma que o juiz titular da Vara de Execução Penal do Amazonas, Luís Carlos Valois, combinou a entrevista que concedeu ao AMAZONAS ATUAL na última quarta-feira, 23, nas dependências do Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), no quilômetro 8 da rodovia BR-174.
Antes de levar a equipe para uma biblioteca usada pelos presos, Valois adentrou os corredores do presídio, o refeitório e as celas lotadas. Com oito camas de concreto, elas abrigam entre 19 e 25 presos. “Como vocês dormem aqui?”, perguntou o juiz aos presos. “Nós bota o colchão no chão, outros amarram a rede ai em cima”, respondeu um deles, numa cela onde 19 cumprem pena. Ao perceberem a presença do juiz, os presos se amontoaram em volta dele no refeitório para cobrar providências em relação aos seus processos. Arrumaram caneta e papel e escreveram dezenas de “bilhetes” com o nome e a situação no presídio. “Eu já era pra tá solto, doutor. Já cumpri a minha pena”, era o que mais se ouvia em meio à aglomeração.
Na biblioteca, em pouco mais de uma hora, a conversa versou sobre o sistema prisional, injustiça, reforma do Judiciário, regulamentação das drogas e as estruturas de poder da sociedade.
Depois da entrevista, Valois levou a equipe para conhecer outras áreas do regime fechado do Compaj. Novamente foi “cercado” pelos presos que aguardavam na biblioteca o fim da conversa. Novamente eles entregaram bilhetes, cartas, páginas de processos. Na saída Valois comentou: “Saí com um novo ‘catatau’” – termo usado pela população carcerária para as pilhas de papeis que são próprias do ofício de juiz.
Confira abaixo a entrevista feita por Allan Gomes e fotos de Valmir Lima.
AMAZONAS ATUAL – Gostaria de começar perguntando se esse passeio, essa nossa “entrada triunfal”, foi proposital.
LUÍS CARLOS VALOIS – Não. Se foi triunfal, foi pra vocês, eu toda vez faço isso, já faz parte da minha função, mas como você tinha dito que nunca tinha vindo em uma penitenciária, eu acho que é um dever meu trazer a imprensa pra um debate. Porque não adianta você falar sobre a prisão sem conhecer uma prisão. Da mesma forma que há juízes que condenam, prendem, colocam pessoas aqui dentro sem conhecer uma prisão – o que eu acho um absurdo, porque a pessoa tem que saber onde ela está colocando uma outra pessoa presa – eu acho que o jornalismo tem que começar a conhecer a prisão pra poder falar da prisão. Então eu tive a iniciativa de trazer vocês aqui por que eu acho que é necessário a mídia tomar conhecimento da realidade carcerária. Porque isso aqui é nossa comunidade, isso aqui é nossa sociedade, isso aqui é Manaus, isso aqui é o Amazonas, são amazonenses, são pessoas que nasceram aqui, que cometeram crimes aqui, e que estão cumprindo sua pena aqui, e isso é um dever nosso, como sociedade, lidar com esse problema que também é nosso, que é o sistema carcerário.
ATUAL – Qual o maior problema do sistema prisional no Amazonas?
VALOIS – O problema é o mesmo do Brasil inteiro: abandono.
ATUAL – Mas isso se dá por falta de verba ou por má gestão?
VALOIS – Isso se dá sobretudo por falta de vontade política, e não só do nosso governador, mas por falta de vontade política nacional. Às vezes a pressão internacional, a pressão da ONU… ou de Ongs ligados ao Direito internacional, em alguns estados que acabam forçando uma reforma aqui ou ali, mas sempre é muito localizada, aquela reforma pra satisfazer um procedimento ou outro. Existe má vontade política no Brasil de sanear, digamos assim, o sistema penitenciário. Em alguns lugares ele precisa ser construído, por que nem sistema penitenciário existe ainda. O sistema penitenciário no Amazonas não é tao ruim – pelo menos o de Manaus, porque o do interior é coisa de Idade Média, é um calabouço, tem mulher presa com homem, criança presa com adulto, não existe! Isso no interior do Amazonas, a minha competência não é o interior, minha competência é Manaus, a Vara de Execuções tem competência sobre o sistema penitenciário em Manaus. Então em Manaus – que eu tenho um déficit de 50%, 100% de vagas – é luxo comparado com o resto do Brasil. O Sistema penitenciário de Manaus é um dos melhores de todos os tempos do Brasil.
ATUAL – E de quem é a responsabilidade do interior?
VALOIS – Também é da Secretaria de Administração Penintenciária (Seap), a mesma secretaria que administra Manaus também administra o interior, mas veja bem, qual é a visibilidade do interior? Quantas vezes tu foste no interior fazer matéria? [para o repórter]
ATUAL – Acho que umas duas…
VALOIS – Pois é, e quantas em Manaus?
ATUAL – Ah, incontáveis
VALOIS – Então, olha só o nível, a desproporção que nós temos. Metade da população do Estado morando no interior, território então nem se fala, e olha a desproporção de cobertura da própria imprensa em relação ao sistema carcerário do interior e o de Manaus. Esse maior saneamento do sistema penitenciário de Manaus é resultado da própria cobrança da imprensa. Por mais que a imprensa não dê o cuidado necessário que o sistema penitenciário precisa, ela tá olhando. Só o fato de existir imprensa em Manaus já faz com que o sistema seja melhor que o do interior. O interior é abandonado tanto no sistema penitenciário, quanto com relação à imprensa, quanto com relação a quase tudo.
ATUAL – O senhor está há quanto tempo na Vara de Execução Penal?
VALOIS – 16 anos… já concorri pra outras Varas, mas não consegui sair. Tentei pra Vara Cível há uns cinco anos, mas não obtive êxito. Agora que vai abrir essas seis vagas (de desembargador) eu tô tentando. É um trabalho muito ingrato. Ser juiz da Vara de Execução Penal é muito ingrato, por que você tá zelando pelo direitos dos presos, zelando pelo sistema penitenciário, em uma sociedade onde a intolerância cresce, onde Direitos Humanos é visto com desdém. Então você acaba sendo juiz de garantias de Direitos Humanos pra pessoas que são praticamente execradas na sociedade. Ninguém pensa que ele pode ter um filho na prisão no dia seguinte, ninguém pensa que ele mesmo possa se ver sujeito a alguma injustiça policial, ou a alguma corrupção, no dia seguinte, ninguém se acha sujeito a estar na prisão no dia seguinte. Então todas essas garantias liberais que a gente tem de presunção de inocência – “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado” –, do devido ao processo legal, a pessoa ter direito ao contraditório, e a ampla defesa, todas essas garantias nasceram com o Estado Liberal, em que todo mundo se achava sujeito ao abuso do Estado, e criaram-se garantias burguesas, pois todo mundo achava que todo mundo podia ser violado, são garantias de todo mundo. O Estado tem o monopólio da violência, mas esse monopólio só é possível dentro de regras, que foram criadas em uma época em que toda a sociedade se achava passível de sofrer violência do Estado. Hoje em dia não é mais toda a sociedade que acha isso.
ATUAL – Eu percebi que os presos tem respeito pelo senhor…
Valois – É por que eu trabalho…
ATUAL – …não seria por que, de certa forma, o senhor é a única pessoa que poderia tirá-los daqui?
VALOIS – …poucos juízes têm a coragem de entrar em um presídio como eu entro, sem escolta, poucos! E os que entram, não entram nos raios e nas celas. Tanto que eu só faço aqui. Eu não entro no IPAT (Instituto Penal Antônio Trindade), no CDP (Centro de Detenção Provisória) e no Puraquequara, por quê? Porque os processos das pessoas que estão lá são de presos provisórios. São pessoas que não foram julgadas, que eu não tenho informação nenhuma sobre o processo, por isso que a audiência de custódia é uma coisa muito importante, porque lá no começo do processo o preso tem contato com o Judiciário. Esse presos das outras cadeias públicas não tiveram contato com o seu processo, esse pessoal aqui não, são pessoas que foram condenadas e todo o processo está comigo e eu procuro dar informação. Tanto que ele eles vêm falar comigo ‘Doutor, o senhor disse já tinha tempo’, ‘Doutor, o senhor disse que tinha como unificar minha pena’, então todos eles sabem do que estão precisando simplesmente porque eu vim aqui em outra oportunidade e falei. Então isso é tudo cobrança do que eu falei antes, existe um diálogo com o Judiciário. E não é só eu, qualquer juiz do Amazonas que entrar aqui vai ser bem recebido, porque eu sou o representante, pra eles, do Judiciário aqui. Então é o meu trabalho, eu tento fazer o meu trabalho da minha forma, apesar da sociedade preferir um juiz raivoso, um juiz que acha bonito uma pessoa ser punida sem Direitos, sem garantia. Eu acho que é o meu dever, meu dever é zelar pelos Direitos das pessoas, inclusive dos presos.
ATUAL – Na reforma administrativa do governador José Melo que deve chegar à Assembleia Legislativa na próxima semana, foi discutida a proposta de fusão das pastas da Secretaria de Administração Penitenciária com a Secretaria de Segurança Pública. Quais seriam as consequências disso?
VALOIS – Bem… eu acho que na medida que você lida com o sistema penitenciário como um anexo da segurança pública, já há um equívoco. Por que segurança pública é a segurança de quem está livre, de quem está na rua. Quem está preso, já está excluído da sociedade. Aqui dentro da penitenciário não há mais que aumentar a pena, que ser mais rigoroso do que já é uma pena de prisão, não há que se bater, que torturar, não há que se fazer nada de violência. A violência já é a própria prisão! A segurança pública age com repressão, com investigação, com combate ao crime, e aqui dentro da penitenciária não há que se combater mais nada. Tem-se que simplesmente administrar. Então qual seria o ideal? Uma administração do sistema penitenciário que fosse direcionada para a dignidade da pessoa que está presa, pra possibilitar que ele estude, trabalhe, que pague, inclusive, pelo dano que causou à sociedade. Uma estrutura de um sistema penitenciário que estivesse voltada não mais para o crime que foi cometido, mas para o futuro, porque já que a gente prendeu esse cara, o que vamos fazer com ele daqui em diante? A visão é totalmente diferente, a segurança olha pro crime, aqui o cara já tá preso, cometeu o crime, aqui a gente tem que olhar pra frente. São visões completamente diferentes, não dá pra olhar pras duas coisas. Então se você colocar uma administração penitenciária que tá preocupada simplesmente com a segurança pública, você abandona toda essa visão de que falei, visão de futuro. Ela vai se preocupar só com o crime, e o que a penitenciária não era pra ser…
ATUAL – Pois corre o risco de ser um sistema vingativo.
VALOIS – É… não era pra ser. O sistema não tem que ser vingativo, por que não é necessário, mas acaba sendo um aspecto só de segurança. O que a secretaria de segurança pública poderia fazer? Aumentar o número de guardas, se preocupar em não permitir a conexão com o lado de fora, se preocupar que preso não tenha telefone, diminuir a possibilidade de fuga? Mas será que é isso que tem que ser a preocupação pra um cara que vai ficar trinta anos aqui dentro? Não é isso, isso é o mínimo! É o mínimo que uma secretaria administração penitenciária tem que fazer, é zelar pela administração minimamente sem corrupção. A partir daí é pensar em projetos para aquela pessoa que tá presa. Esse é o retrocesso [da fusão da Seap com a SSP], ao assumir que a administração penitenciária, passa a ser questão de segurança pública, o que é um equívoco. Não pode ser questão de segurança pública.
Eu tenho um entendimento diferente: achei um equívoco transformar a Secretaria de Justiça em Secretaria de Administração Penitenciária, em desmembrar a Secretaria de Justiça, que era algo maior, com mais poder político. Quer dizer, a administração penitenciária deveria ser braço da Secretaria de Justiça, isso sim, por que a Justiça é algo muito maior que a segurança pública.
ATUAL – Então a SEAP já foi criada pequena politicamente?
VALOIS – Sim, e já foi criada com a visão de segurança pública, tanto que o titular é um coronel. Não é um assistente social, um professor, um psicólogo. Por maior boa vontade que um coronel tenha, qual é a formação de um coronel? A formação de um coronel é de segurança pública. Quais são os projeto de educação, de trabalho, no interior do Estado? Nenhum! Aqui [na capital] tem por que existe uma empresa terceirizada, que faz projetos, porque tá no contrato, mas no interior não tem nenhum e isso é competência exclusiva da Secretaria de Administração Penitenciária.
ATUAL – Recentemente o senhor afirmou, em entrevista para outro veículo, que não existem associações do crime dentro dos presídios amazonenses. Isso vai de encontro a alguns discursos que temos ouvido no Estado…
VALOIS – Olha só, crime organizado, esse termo, é uma palavra açúcar: tanto pra imprensa, quanto para os presos, quanto pra polícia. Todo mundo posa de bom na história. ‘Facção tal’, a imprensa dá manchete. Vende jornal. Por que gangue e quadrilha sempre existiram, não tô dizendo que não tem alguma organização, tem organização criminosa, mas não na proporção que estão colocando, com essas nomenclaturas. Por que nomear essas quadrilhas de crime organizado? Porque enaltece o trabalho da imprensa, vende jornal, enaltece o trabalho da polícia, que pode dizer ‘Não, tô combatendo uma quadrilha, tô combatendo o PCC!’, e enaltece o próprio preso porque ele, na comunidade carcerária, se se declarar de uma facção ele tá sendo enaltecido. O próprio preso, gosta de dizer que faz parte de organização criminosa, porque ele mesmo se enaltece aqui.
Então o que eu vejo é que são quadrilhas que sempre existiram, isso de organização criminosa é um tiro no pé que a sociedade tá dando, por que a gente acaba legitimando isso. Acaba legitimando um bando de pé rapado que se junta pra cometer crime e que a polícia poderia facilmente combater, mas com esse enaltecimento, inclusive dá força pra essas quadrilhas e gangues. Eu acho que dizer que existe crime organizado é legitimar quadrilhas e gangues que não deveriam ser legitimadas. Legitimar é permitir que tenham alcance.
ATUAL – O senhor diz que essas associações não existem aqui… seriam só aqui no presídio, ou elas não existem de forma alguma?
VALOIS – Em São Paulo, no Rio de Janeiro talvez até tenha, porque são muitos anos, mas aqui!? Aqui são quadrilhas.
ATUAL – Mas o que difere, o nível de organização?
VALOIS – Sei lá, até pra Rio-São Paulo, quando se fala em PCC, CV…. você tá legitimando uma quadrilha de bandido. Uma legitimação que ajuda eles mesmos.
ATUAL – Então é uma forma de dar poder?
VALOIS – É! Dá poder pra eles, dá poder pra polícia, que tá fazendo um trabalho de merda, e fica parecendo que tá fazendo um trabalho bom, dá poder pra imprensa, que parece que estão cobrindo grandes criminosos…
ATUAL – E a questão das celas de luxo?
VALOIS – Por isso que eu te trouxe aqui, tu viu alguma?
ATUAL – Não nas que a gente passou…
VALOIS – Mas se quiser pode procurar. Eu nunca vi. De quem seriam essas celas luxuosas? Essas celas eram as de visita íntima, não é de ninguém é de todo mundo.
ATUAL – Qualquer preso pode usar a cela?
VALOIS – Claro! Outra coisa de quem seria a autorização disso? Cadê a autorização? Eu não tenho nada a ver com autorização… E essa história de cela especial que eu teria autorizado, eu ainda não descobri quem foi que criou, por que eu não estava em Manaus na época, mas foi alguma pessoa pra me prejudicar, não sei por que, quem pode ser, por que surgiu isso, mas com certeza que foi algo pra me prejudicar foi.
ATUAL – Com toda essa discussão que vemos hoje de que há um punitivismo exagerado do Judiciário, e as condições de encarceramento. O senhor acha que o Brasil ainda é o país da impunidade?
VALOIS – É só olhar em volta… Olha a penitenciária como tá lotada! Como é que pode ser o país da impunidade? Um país onde há uma superlotação carcerária não pode ser o país da impunidade. Agora, que existe lei demais, e essa quantidade de leis dá a sensação de impunidade, existe. Um monte de leis dava pra não ser lei penal, dava pra ser lei administrativa, leis que não fossem apenadas. Então toda vez que um político encontra um problema que ele não sabe como resolver, ele faz uma lei.
ATUAL – Faltaria um aprimoramento jurídico no país?
VALOIS – Com certeza. Antigamente, no Congresso da década de 1960, ou antes, eles faziam comissões legislativas pra elaborar leis. Hoje não, até um palhaço faz lei… jogador de futebol… Quer dizer, é muito fácil você fazer uma lei que não se encaixe no ordenamento jurídico, que não respeita princípios constitucionais… pra isso serve essa questão do Direito. Você pede pra um juiz fundamentar a sentença dele, o juiz quando vai dar uma sentença ele tem que ir na teoria, com fundamentação, agora, um deputado faz uma lei e não fundamenta nada. Então, quer dizer chegamos em um nível de regras e leis que não são constitucionais, que não se respeitam entre si. Cada deputado quer dizer que fez mais leis que o outro, sai fazendo lei sem nenhuma coordenação, e aí o ordenamento jurídico fica uma zona! E aí a sensação da sociedade, dentro de um ordenamento jurídico difícil de se aplicar, é a sensação de impunidade. Você vê uma lei de crimes ambientais. A primeira pessoa a ser condenada por crime ambiental foi um mendigo em Brasília que cortou a casca de uma árvore pra fazer chá. Um mendigo! Enquanto a Baia de Guanabara é inundada de óleo por balsas, o nosso Rio Negro também recebe quantidade imensas de óleo, o primeiro a ser condenado por crime ambiental foi um mendigo cortando uma árvore. Isso dá a sensação de impunidade! É um descompasso.
ATUAL – A gente então vem de um descompasso entre uma percepção – equivocada – de impunidade, como a gente está vendo nas penitenciárias, pra uma realidade de hiperpunitividade? Porque eles [a população carcerária] não têm só a pena pra cumprir, mas tem que passar por condições lastimáveis.
VALOIS – Exatamente. Essa própria hiperpunitividade – dentro do sentimento de injustiça que causa ao sentimento de impunidade-, ajuda a aumentar a sensação de impunidade, paradoxalmente.
ATUAL – Eles estão submetidos não só ao cumprimento da pena, mas a condições que ampliam as privações.
VALOIS – Isso. A pena não é só aquilo que tá na lei. A pena vem acumulada com um monte de outra coisa. Com a família que tem que passar por situações desumanas pra poder ter visita, com a cama de pedra pra dormir – que não tá na lei-, dormir no chão – que não tá na lei-, com conviver com barata… um preso teve o rosto mordido por um rato no interior.
ATUAL – E nisso tudo ainda tem os casos de estupro.
VALOIS – Ninguém consegue investigar isso…
ATUAL – Por quê?
VALOIS – Por causa da lei do silêncio.
ATUAL – Deles? Dos próprios presidiários, ou do sistema penitenciário?
VALOIS – Deles, mas justamente porque não há uma administração presente dentro das celas. Não tem essa administração. O que a administração penitenciária tem se preocupado é só com a segurança, pra não fugir. Se não tiver fuga, não tem problema nenhum. Não dá manchete, não dá notícia. Um preso ser violentado não é notícia de jornal. A maioria da sociedade acha que preso tem mais é que dar mal mesmo. O poder público só age quando é cobrado. Não tem jeito. O preso quando é detido ele tem o direito a não ser violentado dentro de uma prisão. A um monte de coisa que ele tem direito e que não é respeitado.
ATUAL – E sobre o Adail Pinheiro. Por que que ele ainda não foi transferido para uma penitenciária?
VALOIS – Não poso falar do Adail por que meu pai agora é advogado dele.
ATUAL – Então sobre o Raphael Souza? Bom, são duas pessoas consideradas privilegiadas dentro do sistema prisional aqui no Amazonas…
VALOIS – O Raphael tá cumprindo a pena de forma muito mais rigorosa que os outros presos, inclusive.
ATUAL – Por quê?
VALOIS – Porque ele está no [regime] semiaberto com monitoração eletrônica. É o único preso. Porque normalmente a monitoração eletrônica é pra permitir ao preso ficar em casa e sair pra trabalhar. O preso no semiaberto que sai pra trabalhar e volta, ele não tem monitoração eletrônica. Se ele tem monitoração eletrônica não faz sentido ele ficar lá [no prédio para cumprir a pena do regime semiaberto], que fique em casa e sai com monitoração eletrônica. Ele não, ele tá no semiberto e ainda com a monitoração.
ATUAL – Mas isso é por que ele estava infringindo as regras, não é?
VALOIS – É… mas como ele estava fazendo isso ele deveria voltar pro semiaberto, mas sem a monitoração. E acaba hoje ele é um dos presos que está sendo acompanhado de forma mais rigorosa.
ATUAL – O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da descriminalização do porte de maconha colocou o tema em evidência. O senhor é a favor da regulamentação.
VALOIS – Sou a favor da regulamentação de todos os tipos de drogas.
ATUAL – O que seria essa regulamentação?
VALOIS – O que seria… O álcool, por exemplo, ele não é liberado. Eu acho que a regulamentação deveria ser pensada pra cada tipo de droga. A maconha, o LSD, a cocaína…
ATUAL – Inclusive crack, oxi?
VALOIS – O crack só existe por causa da proibição. Não tem nada no crack, no oxi, que não tenha na cocaína. Eles só existem por que, por ser proibido, a pessoa vai lá e mistura. Na época da proibição do álcool nos Estados Unidos eles misturavam com éter, com gasolina – existia um álcool que era quase um crack-, eles misturavam pra poder passar pela fiscalização e chegar lá na frente, diluir e vender mais. Então, crack e oxi só existem por causa da proibição, você proíbe a cocaína, diminui a quantidade na mão do varejista, aí ele pega e mistura pra poder vender mais. Esse tipo de droga misturada com sujeira só existe por causa da proibição. Dentro de uma regulamentação a cocaína teria a sua medida, a sua pureza, indicações de quem poderia usar, quem não poderia, como o álcool. O álcool hoje ele não é liberado, é regulamentado. Um menor de 18 anos não pode ir comprar álcool no bar, hoje em dia é mais fácil ele comprar maconha, cocaína, do que comprar uma cerveja. Olha que absurdo!
ATUAL – E o senhor já fumou maconha ou fez uso de alguma dessas drogas?
VALOIS – Não… apesar de um ministro do STF ter dito que conhece um monte de usuário, a pessoa pode dizer tudo. Eu conheço usuário também, mas eu não sou, sou atleta, né. Fui campeão brasileiro de jiu-jitsu, corro e treino todo dia. Não que o esporte evite. Tem um monte de cara no esporte que usa droga, usa maconha… eu não tenho preconceito nenhum. Nem beber, eu bebo.
ATUAL – A maior parte da população carcerária está presa por conta do tráfico de drogas. Grande parte deles são pequenos vendedores. Esse tipo de combate ao tráfico está correto, em sua opinião?
VALOIS – Acho que tá completamente equivocado. Nunca vai haver uma sociedade sem drogas. Outro dia eu estava lendo um livro de um pesquisador que foi a uma ilha, onde só se tinha um carro, e os moradores não tinham contato com outros povos. Aí os jovens ficavam cheirando o gás carbônico do escapamento do carro! A sociedade está sempre buscando alguma forma de se entorpecer. Não existe uma sociedade sem drogas. Temos que acabar com essa hipocrisia de pensar em uma sociedade sem drogas. E a pessoa que é acusada de tráfico, só vende por que tem gente querendo comprar. Nós estimulamos que a pessoa pense em ganhar muito, ter vantagens, ser individualista, uma sociedade que enaltece esse tipo de valores, daí a pessoa acaba se envolvendo com uma forma de ganhar dinheiro mais fácil, onde tem gente querendo comprar, e é justamente gente que forma opinião, pessoas de classe alta, classe média… Nós tivemos a apreensão de um helicóptero com meia tonelada de cocaína! Quem tá cheirando essa cocaína toda? É pobre? E ninguém foi preso… era o helicóptero de um senador! Então é uma hipocrisia.
Eu conheço usuário de maconha, mas não conheço usuário de cocaína. Onde estão esses usuários todos da cocaína desse helicóptero? A cocaína é uma droga silenciosa. Às vezes um profissional trabalha, estuda, faz várias coisas, cheira cocaína e não tem problema nenhum. A cocaína, na verdade, cientificamente ela nem droga é, é um estimulante. O efeito do crack, é o efeito da combustão, não é o efeito da cocaína. A combustão faz um mal muito grande, por que é misturada com o gás carbônico da queima. Então qualquer um que seja exposto há uma fumaça muito grande vai sentir alguma coisa, vai sentir o efeito.
O problema todo é que quando você proíbe, você para de educar, de ensinar. Quando você proíbe você acha que resolveu, mas aí é que começa o problema.
ATUAL – O senhor tem estudado o problema das drogas para o seu doutorado…
VALOIS – Meu doutorado é sobre as drogas. Inclusive eu fui convidado a falar sobre drogas para os médicos em um Congresso de Medicina. Eu acho um absurdo um médico ser a favor da criminalização. Médico tem que entender que pra combater as drogas tem que receitar tratamento, não receitar prisão.
ATUAL – …Então, se o senhor diz que um juiz tem que conhecer a prisão pra saber pra onde ele tá mandando os outros. E tendo as drogas como objeto de estudo, não seria natural o senhor ser um usuário ou pelo menos ter alguma experiência? Falo isso por que algumas correntes de estudiosos – sobretudo do ácido lisérgico – defendem que o estudioso das drogas também conheça seus efeitos.
VALOIS – Mas o álcool, que todos os livros dizem que é a pior droga do mundo eu já experimentei, e achei horrível, mas não é por que eu acho a droga ruim que eu acho que ela deve ser proibida, que tem que parar quem tá vendendo ela. O problema todo não é que devemos achar se a droga é boa ou ruim. A droga é ruim! A minha defesa da regulamentação não é por que eu ache que a droga é boa, é por que eu acho que a proibição tá matando mais gente do que a própria droga. Hoje em dia morre mais gente de bala perdida, morre mais gente na penitenciária, do que overdose, por exemplo. Em qualquer jornal você vai encontrar um monte de relato de pessoas que morreram por bala, às vezes que não tava nem participando ou envolvido com nada, agora procura um caso de overdose. Não tem nenhum. O problema da overdose é justamente por causa da proibição. O cara tá usando e injeta 1ml daquela cocaína todo mês, ele já conhece o efeito, agora supomos que ele troca de fornecedor, e vai usar a mesma quantidade, o fornecedor coloca um negócio muito mais puro, e o usuário acha que vai estar usando a mesma quantidade de cocaína, e morre. As overdoses acontecem por que não tem informação sobre o que se está consumindo.
ATUAL – E qual seria o modelo ideal de regulamentação? Holanda? Uruguai?
VALOIS – Esse que é o problema… Por que quando começaram a proibir ninguém justificou. Vai proibir por quê? A gente tem especulações do porquê quiseram proibir, não a justificativa legal da proibição. Não tem. Ninguém perguntou, os caras quiseram sair proibindo e começaram a proibir. Queriam encarcerar populações que eram incômodas nos Estados Unidos – negros, chineses, mexicanos – e inventaram que era por causa da droga que eles estavam consumindo, mas ninguém pediu justificativa pra fazer isso. Agora querem justificativa pra regulamentar? Como se agora tivesse que dar uma justificativa a uma coisa que nunca foi dada pra proibir… fica difícil, dizer um modelo ideal. Por que não tem nenhum país no mundo que tenha descriminalizado todas as drogas. Na medida que você libera só o consumo, você tá é estimulando o traficante.
Esse também é o grande tabu na discussão sobre as drogas, o usuário é visto como bonzinho, e o mal é o traficante. O traficante não mete droga do usuário. Quando a gente diz que o usuário é bonzinho, que é uma vítima, a gente tira a responsabilidade dele de sair do próprio vício.
ATUAL – Existe a questão também de que nem todo usuário é viciado.
VALOIS – Exatamente. E nem todo viciado abusa. Existem quatro tipo de usuários: os que usam esporadicamente, os que usam recreativamente, a viciada, e a que abusa. Então, pode ser um usuário esporádico e abusar, usar recreativamente e abusar…
ATUAL – Abusar seria…?
VALOIS – Criar problema para os outros.
ATUAL – O senhor faz parte de uma organização chamada LEAP. Pode falar um pouco do que é?
VALOIS – É uma associação de policiais que surgiu nos Estados Unidos. Eram policiais que viam o quanto que a guerra as drogas mata mais que a própria droga, e corrompe a polícia, permite que polícia seja corrupta, como ela permite o aumento da criminalidade, como essa guerra é prejudicial pra sociedade, então esses policiais, decidiram zelar pela própria polícia, pela dignidade da polícia, e agora tá se expandindo pelo mundo. Foi fundada no Brasil pela Maria Lucia Karam, uma juíza aposentada do Rio de Janeiro, e e tá presente em outros estados. Sou o único aqui do Amazonas, e meu nome tá lá no site como porta voz. Acho que é uma luta extremamente coerente. São policiais, que tiveram a auto-crítica [de combater a guerra as drogas], porque uma comunidade, uma profissão, uma categoria que não tem auto-crítica é um problema sério.
ATUAL – Temos visto outros casos dentro do Judiciário que apontam para ativismo político por parte dos juízes. Como tu enxergas essa questão?
VALOIS – Olha… eu sempre explico isso… Montesquieu dividiu o poder do rei em Três Poderes [referindo-se à formação do Estado Moderno]: Executivo, Judiciário e Legislativo. Então o Judiciário é um poder político original. Então quando se diz que o Judiciário tem que ser científico, tem que ser fechado, que o juiz não pode ser político, você tá afastando ele do povo, fechando o Judiciário. Se todo o poder emana do povo, o poder Judiciário também tem que dialogar, ter contato com a comunidade. Um poder Judiciário fechado à população é um poder político também, só que em favor de outros interesses, não no interesse da população. Entendeu? O Judiciário tem que agir em favor da população, ele tem que se explicar. Falar é a função política mais correta, mais sincera pra população. Um Judiciário que não fala, não expõe seus posicionamentos, é um Judiciário que talvez a população não queira.
ATUAL – Talvez o nosso processo de redemocratização ainda não tenha nos acostumado com um Judiciário assim.
VALOIS – Com certeza, antes tivemos anos e anos dele calado, né… mas isso é um defeito do Judiciário no mundo inteiro, por que ele, se você for ver, é o Poder que menos mudou do feudalismo até hoje. Ainda se chama de corte! ‘Corte suprema do país’, imagina! Isso é coisa de reis, rainhas, bispos…
ATUAL – Mas os magistrados gostam de se sentir como membros de uma monarquia, não é?
VALOIS – Pois é! É o poder mais parecido e o que menos mudou. Por isso que é o mais calado, por que na época da monarquia, do feudalismo, quem falava era o rei, o Judiciário era só um braço do rei. E eu acho que ele precisa mudar, mudar muita coisa. A seleção dos juízes.
ATUAL – Seria necessário uma reforma do Judiciário?
VALOIS – Com certeza! Acho que esse país precisa tanto de uma reforma política, quanto uma reforma do Judiciário – que também não deixa de ser uma reforma política.
ATUAL – E eleição pra juiz, o senhor concorda?
VALOIS – Concordo!
ATUAL – Eleição direta?
VALOIS – Concordo!
ATUAL – Cotas também?
VALOIS – Concordo! Tudo isso aí é modelo, experiência de democratização, tudo que é passível de democratização eu concordo para o Judiciário, por que é tão fechado que qualquer ação que o abra é uma experiência válida. Por mais que não dê certo, a gente avalia ‘Olha isso não deu certo, vamos tentar de novo?’. Democracia é assim, democracia não é você achar que é a vontade da maioria, e que se não for assim não vai dar certo. Muitas vezes a unanimidade é burra. Democracia é a possibilidade de a gente encontrar outras hipóteses. O Judiciário é muito fechado, há muito tempo, e ganharia mais com maior democratização.
ATUAL – O senhor acha que nos últimos anos tem havido uma espetacularização do Judiciário? Por conta das transmissões ao vivo, da presença das TVs…
VALOIS – Eu acho que se o Montesquieu tivesse visto a imprensa como ela é hoje, ele teria colocado a mídia como o Quarto Poder, e dito que era poder do rei. Com certeza. Por que como é hoje não tinha naquela época, mas hoje em dia a mídia é um poder muito grande. As pessoas fazem as coisas para a mídia, muitas coisas são feitas pra aparecer na mídia. Então, do mesmo jeito que a gente tem dificuldade de lidar com a noção de liberdade política, com a democratização, por muito tempo de Ditadura que vivemos, a própria mídia tem essa dificuldade. Às vezes o repórter confunde liberdade de imprensa com ofensa, com mentira, confunde liberdade de imprensa com um monte de coisa.
Cadê o jornalismo investigativo? Acabou, morreu? É só pegar notícia do que o deputado falou? É pegar notícia que o juiz disse? Ninguém investiga mais nada. Cadê o jornalismo que vai buscar a notícia? A verdade é que em Manaus nós temos muito pouco disso. Nós temos blogs, nós temos jornais, ganhando dinheiro do governo. Político que paga pra blog! Olha que absurdo! Como vou querer que um blog seja isento se ele recebe dinheiro de uma autoridade?
ATUAL – Uma caneta na mão do repórter tem o mesmo peso que uma caneta na mão de um juiz?
VALOIS – Praticamente. Talvez hoje em dia a caneta na mão do repórter tenha mais peso.Os juízes têm medo da imprensa. Se um policial pega alguém com dez trouxinhas, [a imprensa] coloca na primeira página de um jornal, com uma foto valorizando essas trouxinhas e o cara algemado, de cabeça baixa, e bem grande ‘Traficante’, que juiz vai ter coragem de soltar um cara desses? Muito poucos. Muito poucos juízes vão contra a imprensa, ou contra a polícia… Acaba que chegamos a essa situação em que o Judiciário vai se acovardando, por que ele é um poder que quer que as coisas fiquem como estão.
ATUAL – É um poder de manutenção do status quo.
VALOIS – Exatamente. Agora você vê, um juiz ganha auxílio-moradia. Todo juiz tem casa. Isso é uma forma transversa de aumentar o salário do juiz. A sociedade inteira não concorda com isso, mas a sociedade fala? A sociedade briga? A sociedade briga mais com o auxílio-reclusão que 1% dos presos do Brasil, que trabalharam de carteira assinada, recebem. O auxílio-reclusão não é um benefício que todos ganham, é só para aquele que estava trabalhando, recolhendo o INSS, e poucos presos estavam assim. E se você for nas redes sociais cacetam o auxílio-reclusão, e alguém fala no auxílio-moradia? Fala-se muito pouco.
ATUAL – Isso tudo que a gente tá falando tangencia a questão da luta de classes, e até do racismo. É mais fácil falarem do auxílio-reclusão por que quem tá preso geralmente é pobre…
VALOIS – E é fácil bater.
ATUAL – … e a gente fica mirando ali, por que todo mundo queria ser juiz, né.
VALOIS – O engraçado… é que eu critico o auxílio-moradia, mas é um salário de uma transversa. Se eu recusar, eu tô recusando um valor que eu tenho direito. A forma como ele tá sendo pago é que eu tô protestando. Quando eu me aposentar eu não vou ter esse dinheiro. Os próprios juízes que se auto-concederam esse auxílio-moradia, esqueceram que também vão se aposentar. Tudo isso tá errado, só que ninguém fala.
ATUAL – O senhor acha que o salário de um juiz é pouco, no Brasil?
VALOIS – Comparando com a situação do restante do país, não.
ATUAL – Tinha que ganhar mais ou menos? Qual seria o ideal?
VALOIS – Não sei… Quando eu digo que não acho justo é comparado com a realidade salarial do restante da população, talvez o salário mínimo tivesse que ser maior, talvez o salário das pessoas tinha que ser maior.