Por Patrícia Campos Mello, da Folhapress
SÃO PAULO – A política externa lulista está de volta – e com ela, o multilateralismo em todo seu esplendor, para o desespero da turma antiglobalista da extrema direita.
Em seu discurso na COP-27, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegou a defender uma estrutura de “governança global” para lidar com as mudanças climáticas, um foro multilateral cujo poder se sobreponha aos países. “O mundo está precisando de uma governança global, sobretudo na questão climática”, disse Lula.
“Isso porque as decisões [que a ONU e outros órgãos tomam], os Estados nacionais normalmente não concordam com elas, empresários não aceitam, deputados e senadores não votam e não aprovam, então o que aprovamos aqui vai virando um amontoado de papel. Precisamos de um foro multilateral com poder de decisão”, completou.
É uma ideia que deve provocar horror no presidente Jair Bolsonaro (PL), que afirmou, em seu primeiro discurso na Assembleia Geral da ONU, em 2019, que era uma “falácia dizer que a Amazônia é um patrimônio da humanidade”.
“Não estamos aqui para apagar nacionalidades e soberanias em nome de um ‘interesse global’ abstrato. Esta não é a Organização do Interesse Global! É a Organização das Nações Unidas. Assim deve permanecer!”, disse Bolsonaro.
Aliás, todas as ideias apresentadas no discurso de Lula vão em direção contrária à política externa bolsonarista dos últimos quatro anos. Ernesto Araújo, ex-chanceler de Bolsonaro, dizia que um “projeto globalista” vinha se executando por meio do “alarmismo climático”.
Em sua fala, o presidente eleito resgatou temas caros ao Itamaraty na gestão Lula-Celso Amorim: a reforma da ONU e do Conselho de Segurança, a cooperação com países da África, maior integração do país na América Latina, uma aliança mundial contra a fome.
Lula voltou a apresentar o Brasil em posição de liderança no Sul global, representante dos países pobres em suas reivindicações junto aos ricos. Ele enfatizou a necessidade de os países ricos, que mais contribuíram para as emissões de poluentes ao longo da história, façam as contribuições prometidas aos países mais pobres, os mais impactados pelas mudanças climáticas.
Lula também bateu na tecla da necessidade de reforma da ONU para refletir a ascensão de países em desenvolvimento. “Não há nenhuma explicação para o fato de só os vencedores da Segunda Guerra serem os que mandam”, disse, referindo-se ao poder de veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.
Na política externa bolsonarista, o Brasil queria se alinhar com países cristãos brancos ocidentais, como Hungria e Polônia, e aos EUA na gestão Trump. A única instituição multilateral que o governo cultivou foi a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), que funciona como uma espécie de selo de qualidade na atração de investimentos.
Lula também pediu a realização de uma cúpula da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica) e de uma COP em um estado da Amazônia brasileira, em 2025, além de solicitar prioridade ao tema mudanças climáticas na próxima cimeira do G20. “Voltamos para ajudar a construir uma ordem mundial pacífica, assentada no diálogo, no multilateralismo e na multipolaridade”, disse o presidente eleito.
Bolsonaro vetou realização da conferência sobre mudanças climáticas no Brasil quatro anos atrás, ameaçou tirar o país do Conselho de Direitos Humanos da ONU e costumava ficar desconfortável e isolado em eventos multilaterais.
Evidentemente, Lula enfatizou a soberania do Brasil sobre a Amazônia, tal qual Bolsonaro. “Estamos abertos para cooperação internacional climática, por meio de investimentos e pesquisas, mas sempre com a liderança do Brasil, sem renunciar à soberania”, disse o presidente eleito.
Mas, ao contrário de Bolsonaro, que culpava ONGs e ribeirinhos pelos incêndios e desmatamento e dizia haver uma conspiração internacional para roubar riquezas da Amazônia, Lula tem uma visão mais realista da urgência e da gravidade do problema.
Agora só falta mostrar que a prática seguirá o discurso, e cumprir sua promessa de que “o combate às mudanças climáticas terá o mais alto perfil na estrutura do próximo governo”.