No início deste ano (22 de Janeiro de 2020), a Revista Carta Capital trouxe uma entrevista importante sobre o saneamento básico. A entrevista foi concedida por Léo Heller, engenheiro civil, mestre em saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos e doutor em Epidemiologia, com pós-doutorado na Universidade de Oxford (Inglaterra). Atualmente, ele é pesquisador da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) em Minas Gerais e atua como Relator do Conselho de Direitos Humanos das Organizações das Nações Unidas (ONU) para os Direitos à Água e ao Saneamento.
Léo Heller trás uma reflexão interessante que pode nos ajudar na nossa discussão sobre as politicas públicas de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Na sua atuação como Relator da ONU desde 2014, ele tem aperfeiçoado o seu conhecimento sobre a gestão destes serviços, uma vez que ele participa do monitoramento da garantia dos direitos humanos no mundo, produzindo relatórios e realizando visitas em diversos países do planeta.
Um aspecto da entrevista que nos faz pensar é a sua constatação de que há uma tendência predominante no mundo de se retomar os serviços de água e esgoto dos gestores privados para as mãos do poder público. Temos chamado esse processo de remunicipalização porque em geral é o município que reassume os serviços. Segundo Heller, embora tenham ocorrido numerosos casos na América Latina (por exemplo: Buenos Aires e Bolívia) e nos Estados Unidos, a Europa é a região onde ocorre o maior número de casos de remunicipalização. Ao todo, sabe-se que, desde 2000 até 2019, já são cerca de 310 casos de remunicipalização dos serviços de água e esgotamento sanitário.
As motivações são diversas, mas pode-se dizer que a remunicipalização é motivada pela insatisfação com a prestação de serviços privados. Esta insatisfação pode ser oriunda de diferentes aspectos dos serviços. Um deles é o aumento de tarifa. Em alguns lugares pode ter sido o aumento excessivo de tarifa e a não-expansão dos serviços para as áreas mais pobres. Também há casos em que o município se sente muito alijado do processo de tomada de decisão, de o que fazer com o recurso. Há muitos insatisfeitos, inclusive, com a maciça transferência de lucros públicos para as empresas privadas.
Diante destas circunstâncias, tudo indica que o Brasil, ao alterar a lei 11.445/2007, promovendo a privatização dos serviços de água e esgoto, não cumpriu o dever de casa de atualizar-se sobre os impasses gerados nos processos de privatização em outros países. Para o pesquisador, há um dogma por trás dessa mudança da legislação de que o serviço público não funciona no Brasil e de que precisamos substituí-lo pelo privado.
Léo Heller critica também os argumentos dos defensores da privatização, que dizem que a privatização possibilitará a realização da regulação, concorrência e atração de capital privado.
No que diz respeito à regulação, Heller pondera: em cada cidade, existe um prestador. Nós não temos a opção de receber água desse prestador ou de outro, é sempre um só. Isso caracteriza um monopólio natural. É muito difícil uma regulação independente nesses casos. Existem muitas e muitas evidências de situações em que houve uma captura do regulador pelos interesses do empresário. Tem muitos reguladores que olham de fato para a saúde financeira da empresa e não para o interesse da população.
Sobre a suposta vantagem da concorrência nos serviços privatizados, o Relator rebate: Em termos de monopólio natural não tem concorrência. Quer dizer, pode haver uma concorrência, num primeiro momento, quando você faz uma licitação. Depois que se contrata, a concorrência deixa de existir porque você fica com um prestador único, o que dificulta a regulação.
No que diz respeito à atração de capital, Heller esclarece que as empresas não levam recursos delas quando existe privatização. Elas usam recursos arrecadados pelas tarifas, pelo pagamento dos serviços dos usuários, ou quando precisam contrair um empréstimo para alguma obra, o empréstimo vem do poder público. Então, fica a pergunta: por que o poder público não empresta para os próprios prestadores públicos?
Heller critica também as alterações da lei preconizadas pelo governo do Brasil. Para ele, são alterações tendenciosas que estimulam a privatização dos serviços de água e esgoto, enfraquecendo a atuação das empresas públicas. A eliminação dos contratos dos programas, por exemplo, impossibilitará que as empresas públicas municipais procurem recursos federais e estaduais, viabilizando a entrada dos gestores privados no setor. Há uma tendência de transferência dos serviços para as empresas privadas, e elas vão trabalhar muito fortemente para assumirem as cidades mais rentáveis, as capitais, os municípios de maior porte populacional, porque esses locais são mais atrativos financeiramente.
As alterações da lei tiveram uma influência muito forte de um lobby das empresas privadas. Tem um conjunto de empresas no Brasil que estão sob a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) e que atuam no saneamento por meio de concessão do serviço. Elas já estão presentes em várias cidades do Brasil: no Rio de Janeiro tem várias cidades (Região dos Lagos e Petrópolis), São Paulo, Limeira, Manaus. Estas empresas foram os principais atores, fizeram o mais forte lobby para que a lei fosse alterada, prejudicando a atuação das empresas públicas.
O pesquisador denuncia que muitas privatizações são resultados da ação combinada do poder público com o setor privado. O governo estrangula as empresas públicas para que elas não façam um trabalho adequado e sejam reprovadas pela população, justificando assim a entrada dos gestores privados. Existe essa combinação: deterioração da qualidade do serviço na pré-privatização e grande impulso do setor público na pós-privatização, para que o serviço melhore. Há injeção de recursos públicos na empresa privada para que ela melhore o serviço, produzindo uma sensação de mudança.
Léo Heller também demonstra preocupação com as alterações realizadas na lei 11.445/2007, frisando que não há uma efetiva proteção à população mais pobre para o acesso aos serviços. Trata-se de uma inaceitável omissão em relação ao cumprimento do Direito à água e ao saneamento na medida em que se ignora o principio da acessibilidade financeira. Na ânsia de favorecer o mercado e os grandes atores que nele atuam, os pobres não estão sendo olhados mais uma vez. É, mais uma vez, uma legislação que muito possivelmente terá como consequência aprofundar a desigualdade que existe no acesso ao serviço no Brasil.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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