
Por Iolanda Ventura, da Redação
MANAUS – A falta de políticas públicas e de segurança em terras indígenas no Amazonas faz com que índios migrem para Manaus, afirma Zenilton de Souza Ferreira, da etnia Mura. No dia 1º de dezembro deste ano, Zenilton Mura assumiu o cargo de diretor-presidente da FEI (Fundação Estadual do Índio do Amazonas).
Em entrevista ao ATUAL, ele relata que indígenas vêm para a capital em busca de atendimentos em serviços básicos, incentivos e melhores perspectivas para o futuro.
“Tem muitos indígenas que às vezes são vistos de maneira negativa: ‘ah, o que é que você faz na cidade?’. Não é perguntar o que faz na cidade, é entender por que que ele veio para a cidade. Muitas vezes na comunidade dele não tinha remédio, escola, proteção, segurança e veio embora”.
Zenilton Mura afirma que o desrespeito aos territórios demarcados também estimula a saída dos indígenas das comunidades. “As invasões de ‘posseiros’ e outros mais assustam as nossas comunidades indígenas”, diz. Leia a entrevista.
ATUAL – Há uma visão que associa os indígenas somente a vestimenta ou vivência na aldeia. Como quem já ocupou e está ocupando uma posição de liderança, como o senhor responde a isso?
Zenilton Mura – O mundo, em várias regiões e falando especificamente do Brasil, ainda existe muito essa questão do preconceito, é muito forte. E trazendo para o Amazonas, pior ainda. Há uma grande confusão na cabeça de muitas pessoas que no Amazonas todo mundo é índio. Isso já é equivocado. Com relação a nós povos indígenas, tem um comportamento diferenciado no Amazonas. O Amazonas tem 66 povos diferentes. Cada um com a sua cultura, seu costume e aí é variável isso.
Quanto ao preconceito, eu vejo que ele precisa ser quebrado. Não existe essa de ser índio quem anda nu, só se tiver pintado, de cocar, é uma imagem que precisa ser quebrada. Os povos indígenas se organizam da sua melhor maneira. Tem momento de estar ali com seus trajes, cocar, ritual e tem momento que não.
Eu, por exemplo, sou Mura. Eu não preciso colocar na minha testa Zenilton Mura para todo mundo saber. Isso é muito natural. Quem conhece a história do movimento, a história do Brasil identifica logo. Claro que nem todo mundo é um antropólogo para fazer um estudo, uma analogia com mais profundidade sobre a questão. Mas particularmente eu acho que o preconceito precisa ser quebrado em todos os sentidos. Eu acredito que é uma barreira que precisa ter uma política mundial, nacional, estadual, local para quebrar o preconceito.
Enquanto diretor-presidente da FEI, como pretende combater esse preconceito?
ZM – Nós precisamos combater através das ações, gestos, palestras, com trabalho nas escolas, com o trabalho das nossas lideranças e com a mídia. A mídia é um dos grandes parceiros que pode nos ajudar a combater o preconceito.
Quer ter um exemplo? Muitas mulheres indígenas passam por barreiras. ‘Ah, é uma mulher indígena’. E não é bem assim. As mulheres indígenas são iguais a nós, homens indígenas, guerreiras, capazes. E muitas das vezes essas mulheres sofrem preconceito porque são mulheres indígenas. As nossas mulheres além de estarem capacitadas ali na sua região, elas também estudaram, também buscaram formação.

A FEI desenvolve muitas ações de cunho social e econômico. Como a entidade atuará nos próximos anos para além dessas ações, para colocar os indígenas em destaque político e de liderança no Amazonas?
ZM – Nós vamos fazer esse trabalho conjunto, pegando a parceria da comunidade indígena, da Prefeitura, da Câmara, das secretarias estaduais. Por quê? Porque as políticas públicas são responsabilidade dos órgãos que ali estão, seja ela na esfera municipal, estadual ou nacional. A nossa ideia é fazer um trabalho com transparência, organizado, planejado. Conhecer as regiões, as demandas das comunidades indígenas para fazermos grandes projetos.
Tem uma área que não é muito explorada e nós precisamos avançar, que é a questão da economia. As comunidades indígenas são muitos ricas, elas só não estão sendo olhadas com incentivo. Nós temos o pescado, artesanato. Tem inúmeras maneiras de trabalhar o potencial das comunidades indígenas. O Amazonas, 30% do seu território, é indígena. Um dos grandes potenciais é o turismo. E quem tem que trabalhar o turismo são as próprias comunidades indígenas. O que temos que ver é a forma como está sendo feito. Porque a comunidade indígena não pode servir apenas de mão de obra, ela tem que ser gestora também.
Como o senhor avalia as autorizações do general Augusto Heleno, ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), para o garimpo no Amazonas?
ZM – Nós temos que ter dois olhares para isso, uma é a questão legal e a outra é a questão cultural. O Brasil é muito claro sobre a questão da consulta, não está tendo esse respeito, a consulta aos povos indígenas. A gente tem que trabalhar com diferentes olhares. Uma coisa é fazer uma consulta no [calha do rio] Madeira, outra coisa é fazer uma consulta no [calha do rio] Purus. Cada região pensa de uma maneira. Ninguém pode, ninguém deve ter o direito de fazer um projeto em gabinete sem consultar os povos indígenas. Eu estou falando projetos direcionados à população indígena.
Eu particularmente acredito muito que um ministro, secretário, governador, presidente, seja ele quem for, deve fazer uma consulta aos povos indígenas para se implantar qualquer projeto. Tem comunidade indígena que não quer minério, e precisa ser respeitado. E se tem comunidade que queira, que o governo vá lá e dialogue com ela.
Eu acredito que quando parte da consulta, eu estou falando da consulta legal. Quando você parte para uma consulta pelos meios legais, tudo vai funcionar bem. Agora quando parte pelo radicalismo e que não vai pela lei, a coisa começa errada e vai terminar errada.
Mas o senhor acredita que essa consulta tem sido feita de forma efetiva?
ZM – Muito pouco. Onde eu estou vendo que está tendo consulta [para a extração de minério] é em Autazes, a coisa está andando pelo meio legal. Aí tudo bem, deixa que a comunidade decide. A comunidade decidiu que não, vamos respeitar. A comunidade decidiu que sim, vamos respeitar.
Nesta semana, o MPF (Ministério Público Federal) pediu suspensão imediata de licença concedida pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) para início da construção do linhão do Tucuruí. O MPF alega que não houve conclusão adequada da consulta à comunidade Waimiri Atroari. O senhor acredita que haverá respeito mesmo após a consulta?
ZM – Nós estamos falando de uma consulta que parte da OIT 169 (Organização Internacional do Trabalho). O Ibama, MPF, seja qualquer órgão, todos conhecem a OIT 169. E os órgãos, nós povos indígenas todos nos achamos como parceiros, principalmente os órgãos de fiscalização. Eu acredito muito na Justiça Brasileira.
A minha humilde opinião é que os órgãos comecem a buscar o diálogo com os povos indígenas, buscar parceria na FEI, para que a gente possa contribuir com essas discussões. Se tem intenção de qualquer tipo de projeto para as comunidades indígenas, principalmente nessa área de minério, a FEI está de portas abertas para dialogar com qualquer órgão, para a gente levar a mensagem e a consulta para as comunidades indígenas.
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Como quem está na FEI e esteve a frente da Coipam (Coordenação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas) em 2020 e lidou com situações difíceis na pandemia relacionados aos indígenas, de que forma avalia a assistência do governo federal aos indígenas no Amazonas?
ZM – O Amazonas tem sete DSEIs (Distrito Sanitário Especial Indígena), que são ligados à Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena – do governo federal). É de competência da Sesai cuidar da saúde indígena. E na minha avaliação ainda falta o diálogo com a Sesai com as organizações indígenas. A FEI buscará diálogo com a Sesai, para que nós possamos dar a nossa parcela de contribuição.
Há muito o que fazer na saúde indígena. O Amazonas tem as suas particularidades, regiões que precisam de rabeta, barco, lancha, outros de carro. Mas é mais fluvial.
Nós precisamos de polo base nas regiões, transportes, referência hospitalar, precisamos acima de tudo de um trabalho de prevenção. A Sesai não pode trabalhar apenas com remédio, precisamos mudar um pouco da metodologia, que é fazer um trabalho de prevenção.
Precisamos fazer um planejamento emergencial de prevenção, porque a Covid ainda não acabou. E se tem em Manaus, Coari, isso pode chegar às nossas comunidades indígenas. E é pior lá, porque aqui você tem hospitais preparados. E nas nossas comunidades indígenas?
Nós precisamos trazer as organizações, as lideranças para a discussão da saúde indígena. A saúde indígena não pode ficar a parte de uma discussão. As organizações indígenas e as lideranças precisam ter voz, ser respeitadas na Sesai, porque só dessa forma teremos uma saúde indígena de referência. Eu lhe digo uma coisa, por conhecimento de causa, com as verbas destinadas à saúde indígena era para termos uma saúde de primeiro mundo.

Existe alguma discussão para que se invista na formação de médicos indígenas para que não dependam de médicos de fora?
ZM – Imagina que um médico se forma em nome da comunidade indígena e depois de médico nunca mais volta. Qual foi o sentido? Nenhum. Então a minha ideia é criarmos um programa em que a comunidade vai se reunir e dizer ‘esse aqui é o nome que vamos colocar’. Mas depois da formação dele ele voltará.
Porque quando você tem um médico indígena, ele conhece a região, sabe que às vezes o parente bate na porta dele meia-noite. Porque todos os profissionais têm uma carga horária a cumprir. Então essa é a parte fundamental de ter índio médico, professor, engenheiro ambiental, ter outras formações. Porque quando passa a estar além da obrigação é só ele que é da região que entende na pele.
A FEI apresentará um projeto para a Sesai para começarmos a mudar um pouco o cenário e ninguém achar que trabalha isolado. Tenha certeza que quando nós tivermos consultado os presidentes de Condisi (Conselho Distrital de Saúde Indígena), lideranças, organizações, iremos na reta final dessa conversa apresentar um projeto. Mas um projeto pensado da FEI e povos indígenas, não isolado em gabinete, com a ideia dessa saúde indígena ser voltada para nossos irmãos.
Porque se a gente não tiver um programa específico muitos dos nossos irmãos indígenas virão para a cidade. E muitas das vezes vem sem formação. E quando chega aqui tem um monte de gente que está formado desempregado, imagina nossos irmãos indígenas sem formação. Aí vai piorar a situação, porque vai precisar de moradia, alimentação. É por isso que precisamos levar as políticas públicas para os povos indígenas em suas regiões.
Essa falta de políticas públicas onde moram faz com que venham à capital?
ZM – Sim. Tem muitos indígenas que às vezes são vistos de maneira negativa, ‘ah, o que é que você faz na cidade?’. Não é perguntar o que faz na cidade, é entender por que que ele veio para a cidade. Muitas vezes na comunidade dele não tinha remédio, escola, proteção, segurança e veio embora. Tem pai que quer ver o filho médico, doutor, professor. Aí ele vem para a cidade buscar essa alternativa. Os índios não estão em Manaus por uma simples vontade, é por uma necessidade.
E nós também temos que ter um atendimento para os índios que moram em Manaus. Mas se não estivermos preocupados com quem está lá na ponta, só vai piorar as coisas. E essas políticas públicas precisam chegar na ponta.
São inúmeras pessoas vindo das suas aldeias para Manaus e não só Manaus. Tem muitos municípios que nossos irmãos que estão nas aldeias estão chegando. Porque lá na sua aldeia está faltando o incentivo para a juventude. O jovem hoje também assiste a televisão, ele tem o potencial dele. Quer ser um jogador de futebol, artista, mas não tem oportunidade. Os povos indígenas são inteligentíssimos, com muito potencial. E a falta de política pública faz com que muitos deixem as suas comunidades.
As invasões de ‘posseiros’ e outros mais assustam as nossas comunidades indígenas. Nós precisamos ter projetos voltados para a questão de segurança dos nossos territórios.

Como essa migração afeta a preservação da cultura que os indígenas têm no convívio coletivo?
ZM – É muito preocupante quando deixa de estar na aldeia para vir para a cidade, essa influência da evolução ela atinge direta e indiretamente a nossa cultura. Você está lá todo dia na aldeia com um parente falando na sua língua materna. Eu fui na aldeia Betânia, do povo Tikuna, todos falam a língua Tikuna. E aquilo é lindo. E se uma pessoa um dia morar em Manaus, quem mora em Manaus não vai falar Tikuna.
Há urgência de trabalharmos as políticas públicas para os povos indígenas, com diferentes necessidades. A gente precisa correr. Porque Manaus, São Paulo e outras grandes capitais estão preparadas para receber tudo. Mas os povos indígenas, muitas das vezes, nós não estamos preparados para sofrer essa pressão de ataque às nossas culturas.
Zenilton Mura atuou como secretário de Assuntos Indígenas na Prefeitura Municipal de Borba e foi coordenador-geral na Coipam (Coordenação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas).