RIO DE JANEIRO – O sentimento existente na cúpula das Forças Armadas, particularmente no Exército, às vésperas da divulgação do relatório da Comissão Nacional da Verdade, é de irritação e insatisfação.
Os ataques feitos aos militares por integrantes da comissão, que insistem que os comandos das Forças têm de reconhecer que cometeram violações aos direitos humanos, o que é rechaçado por todos, incomoda muito os oficiais-generais da ativa, segundo depoimentos reunidos pelo Estado.
Eles desqualificam o trabalho que está sendo realizado, alegando que a comissão agiu de forma “unilateral”, desprezando o “outro lado da história”. Para os militares, a comissão funcionou como um “tribunal de exceção” que quer “empurrar goela abaixo dos brasileiros uma história que não é verdadeira porque só tem um lado”. Um dos generais ouvidos pelo Estado afirmou que isso não cabe e não pode ser aceito em um país democrático como o Brasil.
A própria presidente Dilma Rousseff, que receberá oficialmente o relatório final na quarta-feira, dia 10, já sinalizou que não quer, neste momento delicado de economia fragilizada, abrir um novo flanco de problema, em uma área que não lhe dá dor de cabeça. Por isso mesmo, de acordo com um interlocutor direto de Dilma, o tom da presidente sobre este assunto, neste momento, é de conciliação.
Os generais consultados pelo Estado foram unânimes em afirmar que o momento é de espera para avaliação do que será apresentado. Segundo um oficial-general da ativa, que não pode se manifestar publicamente, se houver um ataque frontal, será preciso tomar providências, “mas tudo pelos caminhos normais, legais, seguindo a hierarquia, sem nada que afronte a lei ou os princípios democráticos”.
Nos comandos militares, o entendimento é que o Ministério da Defesa está conduzindo a questão de forma satisfatória e não tem nenhum interesse em alimentar uma crise. Portanto, a expectativa é de que as respostas venham exatamente pelo ministro ou o Ministério da Defesa, que falariam politicamente em nome das Forças Armadas. O que mais tranquiliza os militares é a determinação de que não há espaço para qualquer alteração ou revogação da Lei da Anistia.
Boicote
No momento em que alguns setores da sociedade defendem a volta dos militares ao poder, as Forças Armadas deveriam reconhecer os erros cometidos no passado, segundo o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, o advogado e professor Pedro Dallari. Para ele, esse seria o melhor antídoto contra a possibilidade de voltarem a ocorrer graves violações de direitos humanos no País, como as que aconteceram no período da ditadura militar.
“Enquanto as Forças Armadas não reconhecerem isso de maneira franca e cabal, vai ficar sempre no ar a suspeita de que aquele quadro trágico possa voltar a ser uma alternativa para certos setores da sociedade brasileira”, afirmou Dallari.
Em entrevista ao Estado sobre o relatório final que será entregue na quarta-feira à presidente Dilma Rousseff no Palácio do Planalto, Dallari disse que, embora a comissão, instalada oficialmente em 2012, tenha alcançado seus objetivos principais, ele sai frustrado com o fato de não se ter obtido das Forças Armadas o reconhecimento de suas responsabilidades nas violações ocorridas na ditadura. “Parece abstrato, mas se trata de algo relevante, porque gera um diagnóstico sobre como lidar com isso. É o melhor antídoto para que não volte a ocorrer.”
Segundo Dallari, “ao reconhecerem que houve algo inadequado, que não deveria ter ocorrido”, as Forças Armadas estariam solidificando “o compromisso delas com a democracia”. Ele disse não ter dúvida do compromisso dos militares nos dias de hoje com a democracia: “A vocação democrática atual das Forças Armadas é indiscutível. Mas é importante que isso seja visto como algo permanente.”
‘Autismo’
Dallari qualificou como “certo autismo” a insistência dos comandantes militares em não reconhecerem a responsabilidade das Forças Armadas no quadro de violações de direitos humanos, uma vez que ela já teria sido claramente demonstrada após dois anos e sete meses de trabalho do grupo.
“A comissão avançou muito no sentido de caracterizar que as graves violações não foram ações isoladas, não foram excessos, como gostam de falar, mas uma política de Estado concebida e operacionalizada pelas Forças Armadas, que tiveram um protagonismo nisso o tempo todo. O fato de até hoje se recusem a reconhecer essa realidade é frustrante.”
Dallari voltou a dizer que o relatório final trará lista com os nomes de militares apontados nas pesquisas como responsáveis por violações. Além disso, incluirá nomes dos comandantes militares responsáveis pelas operações. Nomes de todos os presidentes militares vão constar da lista de pessoas que devem ser responsabilizadas.
“É a primeira vez que isso vai ocorrer no Brasil de maneira oficial e sistematizada. As condutas se deram dentro de um quadro institucional que foi planejado e operacionalizado a partir do comando do Estado brasileiro, do gabinete da Presidência. Por isso os presidentes vão encabeçar as listas de autores.” Para Dallari, essa deve ser a contribuição mais importante da comissão. “É o que cria condições para, dentro do que determina a lei, indicar as autorias.”
(Estadão Conteúdo/ATUAL)