Numa tarde nublada com ameaças de chuvas, no início de fevereiro deste ano, Cielo aproveitava os intervalos do semáforo na esquina da Av. Álvaro Maia com Major Gabriel, no Bairro Nossa Senhora das Graças, nas proximidades do centro de Manaus para pedir esmola aos condutores que por ali passavam apressados. Trazia o pequeno Nako de apenas 5 meses envolto em uma faixa de tecido verde com estampa laranja, cujas pontas cruzavam seu tronco para serem atadas na altura do ombro esquerdo. O porta-bebê, ou tipóia, como é denominado na língua indígena, protegia a criança que era amamentada ao mesmo tempo que mãe perambulava por entre os carros com a mão estendida apelando para a caridade alheia. A cena é comovente, e Cielo não está sozinha na cidade. Igual a ela, muitas outras mulheres das etnias Pemon e Warao do sudoeste da Venezuela, espalham-se todos os dias por entre as fileiras de carros nas principais ruas e avenidas das mediações da rodoviária e do centro de Manaus mendigando o alimento diário.
Cielo é um nome fictício escolhido para identificar a mulher de 23 anos que aparenta mais de 50 anos por seu físico castigado pela exposição permanente ao sol nas ruas de Manaus. Ela informa que “são muitas as mulheres do Povo Pemon que se deslocaram da Gran Sabana”, nos arredores do Monte Roraima, região fronteiriça entre a Venezuela e o Brasil rumo a Pacaraima, “passando por Boa Vista e chegando em Manaus em dezembro de 2016.
Em entrevista rápida ali mesmo na esquina do Cemitério São João Batista, Cielo nos conta sua trajetória migratória iniciada no início do mês de setembro de 2016, logo depois do nascimento de seu terceiro filho. De acordo com ela, os dois filhos maiores ficaram na comunidade na companhia do pai que “rejeitou o pequeno Nako” desde o seu nascimento.
Perguntada sobre o motivo da “rejeição”, a mãe aflita e desconfiada explica na língua espanhola, de forma bastante resumida que “Nako é fruto de um estupro coletivo cometido por um grupo de brasileiros que visitava o Monte Roraima em dezembro de 2015”. Desde o ocorrido ela e outras três mulheres Pemon “vítimas do mesmo crime, peregrinaram nas comunidades indígenas nos arredores dos rios Uairen, Arabopo e Yuruani”, região sudoeste do estado Bolívar da Venezuela, “buscando condições de trabalho e sustento para os filhos”. Ela conta que por todas as comunidades por onde passaram sofreram rejeição por parte dos “parentes” que não aceitam as crianças “filhas de estrangeiros” e por isso “decidiram deixar a Gran Sabana e vir para o Brasil” em dezembro passado. Em Pacaraima e depois em Boa Vista somaram-se a outros “parentes” das etnias Pemon e Warao formando pequenos acampamentos de migrantes solicitantes de refúgio ou visto humanitário, dada as condições econômicas precárias porque passa a Venezuela nos últimos anos.
A história de Cielo representa milhares de mulheres no mundo inteiro em situação de migração e refúgio. Em recente lançamento do livro intitulado “Dinâmicas migratórias na Amazônia contemporânea” publicado pela Editora Scienza no final de 2016, a temática da feminização das migrações perpassa todas as análises de nossa tese de doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas entre 2010 e 2014. Atualizado com algumas informações do estágio Pós-Doutoral realizado entre 2014 e 2015 no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima, o livro apresenta a complexa situação da feminização das migrações caracterizada pelos deslocamentos compulsórios e pela exploração do trabalho de milhares de mulheres migrantes e refugiadas no mundo inteiro.
Os primeiros tratados da feminização da migração referem-se aos dados da migração europeia, entretanto, segundo estudos da Organização Internacional para as Migrações – OIM, parceira Organização das Nações Unidas – ONU, esta é uma tendência em escala mundial.
As teorias da feminização da migração baseiam-se não apenas no aumento real no número de mulheres nos fluxos de deslocamentos populacionais, mas também pela aceitação do conceito de mulher migrante. Tal aceitação confere à mulher outro “lugar” social e político nas coordenadas das migrações, deixando de ocupar o lugar secundário na perspectiva da dependência do marido, dos pais ou parentes próximos, e assumindo os riscos e as responsabilidades da condição de mulher e migrante.
Para uma melhor compreensão da dinâmica da feminização da migração, os estudiosos classificam os fluxos migratórios por categorias específicas, de acordo com algumas variáveis levando em consideração: as diferentes trajetórias e estratégias migratórias elaboradas pelas mulheres ou identificadas no seu perfil migratório; a participação diferenciada das mulheres migrantes nas redes sociais; a reconfiguração de papéis de gênero nos fluxos migratórios e os novos e específicos mercados de trabalho caracterizados pela precarização e exploração do trabalho das mulheres.
A negligência em relação à variável “gênero” nos estudos migratórios evidencia a relação de dominação reproduzida também nas formulações teóricas. Ao ignorar a contribuição das mulheres nos fluxos migratórios, os Estados Nacionais também negligenciam desse fato em suas intervenções e políticas públicas específicas para mulheres. Por outro lado, a variável “gênero” oferece uma importante contribuição para as análises do novo perfil do migrante contemporâneo nas suas mais variadas situações. As relações de gênero podem definir novas representações nos contextos migratórios que vão muito além das cifras contábeis e das estatísticas.
Os estudos das relações de gênero em consonância com as teorias migratórias contribuem para demonstrar como as mulheres articulam as redes de migração e as alterações das relações familiares e de gênero em contextos migratórios. Isso leva a concluir que a mulher migrante de hoje não é a mesma de tempos atrás. Ela mudou com os tempos e a experiência migratória contribuiu para estas mudanças tornando-a mais independente, autônoma, protagonista, em algumas realidades e contextos, não obstante, mais dependente, dominada e explorada, em outras realidades e conjunturas, não raro caracterizadas pela violência sexual, como o caso de Cielo que ora apresentamos.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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Muito interessante esse tema da feminização migratória por isso optei por esse tema e meu objeto de estudo para o mestrado será as mulheres indígenas da etnia warao. Estou estudando o seu livro doutora Marcia muito riquissimo em conhecimento.