“O feminicídio é um crime que expõe a ferida sexista, sendo, pois, um crime de ódio, menosprezo e discriminação contra as mulheres, baseado em papéis socialmente construídos pelo patriarcado. O feminicídio íntimo é caracterizado por não ser um fato isolado na vida das vítimas, mas por ser o final de um histórico de abusos verbais e físicos com intensas manifestações de violência e privação a que são submetidas as mulheres por quem as matam, em sua maioria, companheiros e parceiros afetivos”, afirma a mais jovem cientista dos Estudos de Gênero da Amazônia, Rayane de Oliveira Viana, em sua Dissertação de Mestrado.
A dissertação foi desenvolvida e defendida no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas, na linha de pesquisa Gestão social, Desenvolvimento, Ambiente, Direitos humanos, Cultura e Diversidade socioambiental, sob orientação da professora doutora Iraildes Caldas Torres.
Tive a honra de compartilhar a banca examinadora com a professora doutora Lidiany de Lima Cavalcante num ritual acadêmico de conclusão de curso que se revelou uma verdadeira conferência sobre a questão do feminicídio na Amazônia. Tema relativamente novo nos estudos acadêmicos, o feminicídio representa um grande desafio para os estudos sobre as relações de dominação e violência de gênero.
Com a dissertação intitulada ‘Aspectos sociais do feminicídio íntimo em Manaus: um estudo sobre a violência doméstica e seu desfecho com o assassinato de mulheres’, a pesquisadora abordou a temática de forma didática e profunda. Apresentou uma tipificação dos ciclos da violência contra a mulher, que geralmente culminam com o feminicídio, que assumiu uma caracterização de manual de orientação que torna o tema acessível a toda a sociedade.
A pesquisa de campo foi prejudicada por causa do advento da pandemia que, inclusive vitimou o pai da pesquisadora que foi um dos grandes incentivadores de seu estudo. A metodologia de pesquisa precisou ser reinventada mediante as limitações de entrevistas presenciais como é de praxe Serviço Social.
A pesquisadora realizou amplo levantamento da literatura sobre o tema e trabalhou com “dados e informações públicas, por meio de levantamento estatístico do número de feminicídios ocorridos no ano de 2019 disponibilizados no site oficial da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Amazonas (SSP/AM) e uma amostra de processos gerados no site do Departamento de Pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)”.
Através de pesquisa hemerográfica, que é o “catálogo de jornais e outras publicações periódicas”, a estudiosa realizou intensa investigação científica em “fontes de informações de jornais, sobre os casos ocorridos e relatos de familiares e parentes das vítimas, assim como profissionais da rede de atenção à mulher e representantes de movimentos sociais”.
A pesquisa lidou com descrições de 09 ocorrências de feminicídios no ano de 2019, somente em Manaus. A autora explica que os estudos de cada caso revelaram “os impasses e fragilidades na rede de amparo à mulher em situação de violência que incidem sobre os casos de feminicídios, como também evidenciou o protagonismo significativo que os movimentos de mulheres exercem na luta pela efetivação dos direitos das mulheres”.
Da mesma forma, a pesquisa apontou a luta por justiça por parte dos familiares das vítimas que foram assassinadas pelo fato de serem mulheres.
No decorrer da pesquisa a autora identifica que “o sistema patriarcal continua sendo o dispositivo de poder que promove a opressão e o assassinato de mulheres em todos os tempos, sendo mais patente e visível atualmente”. Isso se deve ao processo histórico de desnaturalização da violência contra as mulheres e aos novos mecanismos de justiça que atuam em defesa das mulheres como a Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, promulgada no Brasil em 2006.
A tipificação do feminicídio foi amplamente apresentada e aprofundada na dissertação que contribui para desconstruir a falácia do crime passional utilizado por centenas de anos para criminalizar as vítimas e absolver os homens nos homicídios de mulheres. Um dado extremamente relevante apresentado na pesquisa é a relação íntima da vítima com o assassino. Num ambiente de relações que deveria ser de cuidado e proteção mútua, é justamente onde ocorre a violência e o homicídio.
Na mesma linha, a pesquisadora chama a atenção para os órfãos do feminicídio. De acordo com a autora, “nos casos de feminicídios íntimo, cometidos em sua maioria no contexto doméstico, por parceiros afetivos, sejam companheiros, maridos ou ex-maridos e ex-companheiros, se manifesta outra face cruel desse crime que são os filhos do feminicídio”. “Em muitos casos, quando a mãe morre, eles também perdem o pai que é preso, portanto, esses órfãos sofrem duplamente. São crianças e adolescentes que ficam privados do convívio dos pais. Parentes ou instituições assumem a responsabilidade e é nesse contexto que o poder público também tem o dever de intervir”.
Ao final da extensa pesquisa a autora conclui que “os indicadores deste estudo revelam que embora a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) e a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015) representarem grandes conquistas das mulheres no enfrentamento da violência doméstica, os índices dessas agressões tem aumentado”. E alerta que “aumentou também o índice de feminicídio, aprofundando o mal-estar impetrado às mulheres”.
A pesquisadora afirma que “o feminicídio assume caráter político, na medida que o Estado é também responsável pela continuidade dessas mortes. É, pois, no âmbito da ação político-reivindicativa dos movimentos feministas, que podem sair do papel as políticas públicas estabelecidas em lei, apontando a omissão do Estado na investigação, identificação e condenação justa dos criminosos”.
Enfatiza a atuação do Fórum Permanente de Mulheres de Manaus como rede de articulação de diversos movimentos e grupos de mulheres “protagonistas na luta pela efetivação dos direitos estabelecidos em lei, na proteção e enfrentamento à violência doméstica, exigindo apuração criminal com o olhar de gênero, lutando para que haja penas mais justas aos autores dos crimes de feminicídio ocorridos na cidade de Manaus”.
Por fim, a pesquisadora espera que sua pesquisa “desperte o anseio de outros pesquisadores e pesquisadoras para a investigação científica sobre o tema do feminicídio em nossa realidade amazônica, para que a ciência possa contribuir com a organização dos movimentos sociais que lutam pelos direitos das mulheres em situação de violência. Também ansiamos que este estudo contribua para que os poderes públicos, seja nas instâncias federais, estaduais e municipais, busquem e estabeleçam maior efetividade das políticas de proteção e enfrentamento à violência doméstica contra a mulher”.
O estudo de efetiva originalidade e de grande relevância para o Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas breve estará disponível para download gratuito no banco de teses e dissertações da UFAM. Parabéns à pesquisadora e à sua orientadora pela excelência do trabalho científico que muito contribui para toda a sociedade.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial do AMAZONAS ATUAL.