Da FolhaPress
SÃO PAULO – Os dois pilares do programa de educação do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) -a expansão do ensino a distância para crianças a partir de seis anos e o uso de vouchers nas universidades- geram dúvidas em relação aos custos e desconfiança quanto a possíveis conflitos de interesse de membros da campanha.
As propostas de Bolsonaro buscam responder às dificuldades orçamentárias e às restrições aos investimentos em educação que, submetidos ao teto de gastos, não podem crescer acima da inflação.
Segundo o programa registrado no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), a educação à distância “deve ser considerada como alternativa para as áreas rurais, onde as grandes distâncias dificultam ou impedem aulas presenciais”.
A prática do ensino à distância, mais conhecido como EaD, já vem sendo usada no ensino superior, especialmente no setor privado, como forma de reduzir as mensalidades e atrair alunos. Na década passada, a modalidade explodiu, passando de 1,8% do total de matrículas do ensino superior privado em 2005 para cerca de 30% em 2017.
O ensino a distância tem custos menores para a instituição porque o aluno realiza parte dos estudos em casa, desafogando despesas com infraestrutura da instituição e salário de professores. No entanto, em locais onde o EaD é financiado pelo governo, como em alguns estados americanos, dados apontam que o modelo remoto não é necessariamente mais barato.
Estudo publicado pelo Centro Nacional de Política de Educação (NEPC), da Universidade do Colorado, mostra que em 11 de 16 estados americanos, as escolas virtuais demandavam praticamente a mesma quantidade de recursos das escolas físicas. A redução de custo, quando ocorria, era muito pequena, entre 5% e 8%.
Para Allan Kenji, pesquisador da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), afora a discussão básica sobre a qualidade desse tipo de ensino na infância, que tende a deixar lacunas, é preciso considerar a viabilidade de implantação.
Kenji reforça que o ensino a distância com crianças pressupõe ter um adulto em casa cuidando do menor, o que pode ter repercussões negativas sobre emprego e renda. O voucher, por sua vez, funciona como uma bolsa para famílias de baixa renda escolherem a escola de seus filhos –algo semelhante ao Prouni.
A ideia, disse Paulo Guedes, é que, aqueles que podem, passem a pagar a universidade pública e, quem não pode, levaria o voucher.
O gasto por aluno no ensino superior gira em torno de R$ 9,7 mil ao ano. Se todos os recursos fossem usados no novo sistema e repartidos, cada aluno receberia cerca de R$ 800 para bancar a graduação. Para especialistas, a quantia é insuficiente para arcar com diversos cursos.
Como o objetivo é que os alunos de renda mais alta paguem mensalidade, o valor rateado entre os de menor renda poderia ser maior. Se o voucher fosse ampliado para o ensino básico, o valor transferido ao estudante seria de R$ 530, considerando o atual gasto anual por aluno, segundo cálculos de Naercio Menezes, professor do Insper: “A ideia básica de gerar mais concorrência no sistema escolar é interessante, mas o que ele poderia escolher com R$ 500?”
Julia Dietrich, especialista em educação da Universidade Federal do ABC, afirma que a política de voucher foi adotada por alguns países latino americanos, como o Chile, no início dos anos 1980. A expectativa era que a competição entre as escolas levaria a uma melhora da qualidade.
“Não deu certo. Dentre as famílias mais pobres, as que tinham condição financeira um pouco mais favoráveis escolhiam as escolas melhores. O resto ficou com escolas de formação duvidosa, exatamente o que se critica no Fies”, afirma Dietrich.
O Fies é o programa de financiamento estudantil do governo que atraiu estudantes para faculdades privadas com crédito barato a partir de 2010, mas foi enxugado em 2015 pelo corte no Orçamento. Segundo William Klein, presidente da consultoria especializada Hoper Educação, ainda não está claro de onde viriam os recursos para o voucher.
“O Fies é diferente. É um financiamento estudantil, ou seja, mesmo que tenha uma quebra, com um percentual de alunos inadimplentes, esse fundo tem um retorno que dá sustentabilidade”, diz Klein.
Outro ponto que preocupa especialistas é que os modelos defendidos durante a campanha de Bolsonaro beneficiam setores ligados a possíveis futuros integrantes do governo.
Stavros Xanthopoylos, conselheiro de Bolsonaro na área de educação e cotado para comandar a pasta, passou parte de sua carreira na defesa do segmento de ensino a distância. Xanthopoylos já foi vice-presidente e hoje é diretor da Abed (Associação Brasileira de Educação a Distância), entidade que reúne empresas com atuação na área.
Entusiasta do ensino a distância, Paulo Guedes tem, ele mesmo, apostado no setor, por meio de sua Bozano Investimentos, que hoje conta com oito empresas de educação investidas no portfólio de fundos private equity e venture capital (que investem em empresas). Entre eles estão a Wide, que oferece soluções de EaD para companhias de educação, e a QMágico, plataforma online que conecta estudantes a professores.
“Usar ensino a distância para crianças e alunos da zona rural, que mais precisam de acompanhamento, é rasgar dinheiro. Fora o conflito de interesses”, diz José Marcelino, professor da USP em Ribeirão Preto.
Carlos Monteiro, presidente da CM Consultoria, especializada em educação, estima que a implementação do EaD no ensino básico seria rápida.
“Em termos práticos, como já há ensino superior, eu penso que seria só descer essa legislação para o ensino fundamental e médio. Não é nada do outro mundo, não precisa passar pelo Congresso. Pode ser tratado na órbita do próprio Ministério da Educação”, afirma.
Procurado, o MEC informa que não há nenhuma diretriz do Conselho Nacional da Educação sobre educação a distância na educação básica.
“A atual gestão do MEC entende que há várias possibilidades de aproveitamento das tecnologias educacionais, mas nunca em substituição ao professor em sala de aula”, diz o órgão em nota.