Da Redação
MANAUS – Enquanto o estatuto social da Petrobras estabelece que os seus acionistas terão direito a, no mínimo, 25% do lucro líquido ajustado da empresa, o estatuto da Cigás (Companhia de Gás do Amazonas) assegura aos seus acionistas o percentual mínimo de 75% dos dividendos.
A Cigás é uma empresa de economia mista, sendo o Estado do Amazonas acionista majoritário, com 51% das ações ordinárias da empresa, mas é a Manausgás S.A, de capital privado, que detém a maior fatia do capital social: 83% contra 17% do Governo do Amazonas.
Significa que se a Cigás apurar R$ 100 milhões de lucro em um ano, seus acionistas privados ficam, no mínimo, com R$ 75 milhões. O estatuto da empresa também prevê que 5% do lucro líquido seja destinado ao fundo de reserva legal para a companhia. Os 20% restantes ainda não são do Governo do Amazonas, que na prática só teria direito a 17% do que sobra depois de retirados os 5% para o fundo de reserva legal.
O estatuto da Cigás diz, ainda, que a assembleia geral estabelecerá a destinação do lucro líquido remanescente, ou seja, o que sobra depois de retirar os 5% do fundo e os 75% dos acionistas privados. E o Conselho de Administração poderá autorizar dividendos intermediários à conta de lucros acumulados ou de reservas de lucros existentes no último balanço anual ou semestral.
Por que a empresa que tem a exclusividade na exploração do gás natural do Amazonas e que tem o Estado como maior acionista (ações ordinárias) deixa apenas uma migalha dos lucros aos amazonenses? Essa é uma explicação que o grupo político que governa o Amazonas desde 1995, quando a Cigás foi criada, precisa responder.
No parecer contrário ao veto governamental ao Projeto de Lei nº 153/2020, que regula o mercado de gás no Amazonas, o deputado estadual Fausto Júnior (PRTB) afirma que a Cigás “é uma empresa feita para gerar dividendos aos seus sócios”.
O percentual distribuído aos acionistas da Cigás está previsto no Capitulo VII do estatuto social da companhia, que traz o seguinte teor: “Art. 46. É assegurado aos acionistas a percepção do dividendo mínimo obrigatório de 75% (setenta e cinco por cento) do lucro líquido ajustado em termos da lei em cada exercício.”
De acordo com Fausto Júnior, a Lei das S/A (Lei Federal nº 6.404/76) “fala em dividendos obrigatórios de 25%”, e é exatamente o percentual adotado pela Petrobras para dividir seus lucros com os investidores privados.
A Cigás obrigatoriamente distribui 75% de todo seu lucro aos sócios privados. Para o parlamentar, “isso impede qualquer tipo de investimento na malha de distribuição de gás” no Amazonas.
O parecer contrário ao veto também cita que a distribuição de dividendos não vai parar nos cofres do Estado que, segundo Fausto Júnior, “só tem 17% da Cigás”, mas é direcionado “quase que integralmente para o bolso privado da Manausgás S/A.”, sócio privado da Cigás.
Em 2019, segundo o parecer, a Cigás lucrou R$ 141 milhões. Desse total, o Estado do Amazonas recebeu R$ 23,9 milhões (17%) e a Manausgás, R$ 117 milhões (83%). No ano anterior, a companhia teve lucro de R$ 62,2 milhões, dos quais R$ 9,2 milhões foram para o Estado e R$ 45,1 milhões para a Manausgás. Nos dois anos a companhia não fez investimentos.
De acordo com Fausto Júnior, em denúncia enviada ao TCE-AM (Tribunal de Contas do Amazonas), a Arsepam (Agência Reguladora dos Serviços Públicos Delegados e Contratados do Amazonas) relatou que “os técnicos responsáveis relatam as dificuldades encontradas ao tentar (junto à Cigás) emplacar projetos de grande relevância social e de interesse do governo, como o do Gás Natural Social”.
A agência também citou, segundo o deputado, o “baixo investimento da empresa mesmo diante de um faturamento sempre crescente”. Para a Arsepam, “os técnicos acabaram por demonstrar que há uma proporção inversa em faturamento e investimento, posto que quanto mais se fatura, menos se investe”.
Essa discrepância na distribuição dos lucros é citada pelo relator para derrubar o veto governamental ao PL 153/2020. Fausto Júnior sustenta que a Cigás é uma empresa feita para não investir, pois obrigatoriamente distribui 75% do seu lucro como dividendo, e para gerar lucros aos seus sócios privados. “Ainda assim pretende conservar anacronicamente todo o monopólio do gás no Estado”, escreveu.
A divisão dos lucros, inclusive, gerou revolta do conselheiro do TCE-AM Ari Moutinho Júnior no último dia 15 de junho em audiência pública da ALE (Assembleia Legislativa do Amazonas) sobre prestação de serviço do gás natural no Estado. Na ocasião, o presidente da Cigás, René Levy, disse que o Estado do Amazonas é acionista majoritário da companhia.
Moutinho Júnior questionou Levy: “Se vender a Cigás por R$ 100 mil, o Estado vai levar R$ 51 mil ou R$ 17 mil?”. Quando o presidente da Cigás começou a responder, o conselheiro interrompeu: “Fale a verdade! Parou a brincadeira”. Ari passou a atacar os diretores da Cigás e o governador Wilson Lima, a quem chamou de “analfabeto, imbecil, ladrão”.
Na mesma audiência, os diretores da companhia afirmaram que “até o dia de hoje, a cadeia do gás natural do qual a Cigás faz parte já arrecadou ao Estado do Amazonas R$ 3,2 bilhões de ICMS em valor corrigido. No ano de 2019, R$ 540 milhões de ICMS. Dados podem ser consultados na Secretaria de Fazenda”, disse um dos diretores.
Apesar de o relator do veto ao PL 153/2020 citar que a promulgação do projeto geraria “valores da ordem de R$ 43 bilhões e mais de 32 mil empregos nos próximos 10 anos em nível nacional e uma elevação na arrecadação de ICMS da ordem de 3% ao ano”, o vice-governador Carlos Almeida Filho disse, em entrevista ao ATUAL, que a proposta ameaça a arrecadação de R$ 500 milhões por ano.
De acordo com Almeida Filho, o projeto permite que o consumidor de gás acima de 300 mil metros cúbicos por mês possa comprar direto do produtor, eliminando o distribuidor, o que não gera arrecadação para o Estado. Segundo ele, essa mudança derrubaria a arrecadação de ICMS em R$ 500 milhões por ano.
Os defensores do projeto discordam. O presidente da Assembleia Legislativa, deputado Josué Neto (PRTB), escreveu em uma rede social que as informações prestadas pelo vice-governador são mentira.
O Projeto de Lei nº 153/2020 foi aprovado pela ALE no dia 8 de abril, mas foi vetado pelo governador Wilson Lima (PSC) por vício de iniciativa. Na mensagem governamental enviada aos deputados no dia 5 de maio, Lima afirmou que o projeto é inconstitucional porque “compete privativamente à União legislar sobre jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia”.
O veto ainda não foi apreciado pelos deputados e está trancando a pauta da ALE desde o dia 5 de junho. A líder do governo na Casa, deputada Joana Darc (PL), já pediu o destrancamento da pauta, mas o deputado Josué Neto disse que aguarda o envio do projeto de lei de autoria do Executivo sobre o tema. Para derrubar o veto, Neto precisa do voto de 13 deputados.
Na próxima reportagem, o ATUAL vai mostrar quem está por trás das empresas que levam para fora do Amazonas os lucros da venda do gás natural.