Da Agência Câmara
BRASÍLIA – Três anos após a publicação da lei que tornou crime a violência política de gênero (Lei 14.192/21), o Brasil teve apenas duas sentenças de condenação pelo crime, nenhuma delas transitada em julgado, ou seja, sem possibilidade de recurso (dados de 2021 a 2023). Além disso, uma em cada quatro representações de violência política de gênero entre 2021 e 2023 foi arquivada ou encerrada.
Os dados constam no Relatório Monitor da Violência Política de Gênero e Raça, lançado na terça-feira (27) pelo Observatório Nacional da Mulher da Política da Câmara dos Deputados, em conjunto com o Instituto Alziras e a Agência Francesa de Desenvolvimento.
O relatório abordou 175 casos monitorados pelo Grupo de Trabalho de Prevenção e Combate à Violência Política de Gênero criado pela Procuradoria Geral Eleitoral do Ministério Público Federal. Entre os 175 casos, todos de mulheres em exercício de mandato, apenas 12 (ou 7% das representações) foram convertidas em ação penal eleitoral referente ao crime de violência política, por meio de denúncias criminais feitas pelo Ministério Público.
Dessas 12 ações, oito ainda estão em julgamento, duas estão com suspensão condicional e duas tiveram sentenças proferidas.
Tratamento pela Justiça
No lançamento do relatório, a codiretora do Instituto Alziras, Tauá Lourenço Pires disse que a campanha eleitoral municipal deste ano já se iniciou com muita violência política de gênero e de raça. Mas, na avaliação dela, incorporar o tema violência política de gênero e de raça no sistema de Justiça brasileiro continua sendo um desafio, a despeito da publicação da lei.
“Sempre que tem uma obstrução ou algo que impeça ou atrapalhe o exercício do direito político das mulheres, que estão em mandato ou candidatas, é violência política de gênero, parece óbvio, mas muitas vezes é enquadrado como injúria, como ameaça, como difamação”, apontou.
Segundo o relatório, duas em cada três ações penais eleitorais de violência de gênero ajuizadas até janeiro de 2024 não foram classificadas devidamente no Sistema de Processo Judicial Eletrônico.
Mandatos sequestrados
Aline Rocha, representante do Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades, que reúne dezenas de organizações da sociedade civil brasileiras, destacou que as parlamentares brasileiras precisam enfrentar as desigualdades de gênero ao mesmo tempo em que sofrem violência política na realização do seu trabalho.
“Quanto desses mandatos dessas mulheres ficam sequestrados porque têm que ficar se defendendo diuturnamente do momento em que assumem, vários pedidos de cassação, um monte de pedidos que não são de cassação, mas outros em comissões de ética, é um desgaste, a violência é o tempo todo”, disse.
A deputada Dandara (PT-MG) relatou que “já foi desautorizada, silenciada” e que “já tentaram invalidar, deslegitimar”, a presença dela, seja como parlamentar eleita, seja como candidata. “Mas, se nossa presença incomoda, estamos no caminho certo, porque viemos para incomodar”, acrescentou. A deputada Carla Ayres (PT-SC), por sua vez, considera a produção de dados sobre o tema muito importante para se tentar criar estratégias de romper com essa realidade.
As deputadas Gisela Simona (União-MT) e Daiana Santos (PCdoB-RS) ressaltaram que é preciso denunciar a violência. Daiana Santos, que coordena atualmente o Observatório Nacional da Mulher da Política da Câmara durante a licença da coordenadora Yandra Moura (União-SE) para concorrer às eleições municipais, enfatizou que “proteger as mulheres na política é proteger a democracia”.
Questão racial
Secretária Executiva do Ministério da Igualdade Racial, Rogéria Eugênio lembrou do assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco e ressaltou que o debate sobre a violência política avançou a partir da vitimização de mulheres negras. Para ela, o debate tem que continuar avançando a partir da reflexão sobre a questão racial.
“Quando o microfone das parlamentares é desligado, quando elas não têm acesso a determinado debate porque aconteceu fora do horário formal e comum, isso são meios de impedir o seu exercício pleno, e é aí que a gente consegue explorar sobre como a violência política de gênero contribui para que a gente observe a misoginia, o racismo, a LGBTQIfobia de forma muito concreta”, avaliou.
Mudar a política
A procuradora geral eleitoral do Ministério Público Federal, Raquel Branquinho, acredita que, se dependesse apenas das leis, era para haver muito mais mulheres na política. Ela destacou, porém, que há apenas 16% de mulheres vereadoras nas câmaras municipais e apenas 12% de mulheres prefeitas no Brasil. No Congresso Nacional, a representação das mulheres é de 17,7%, o que coloca o Brasil na posição 132 no ranking da União Interparlamentar de participação das mulheres na política, com 181 países ao todo.
“Não adianta ter um bom aparato de leis se isso não está casado com a política e com a realidade da sociedade”, afirmou. “Nós temos que mudar a política, porque é a partir do sistema e tendo os partidos políticos na centralidade dessa discussão é que poderemos alçar caminhos mais promissores”, completou. Ela criticou a Emenda Constitucional 133, promulgada no dia 22 de agosto pelo Congresso Nacional, que perdoa os partidos políticos que descumpriram a cota mínima de candidatos pretos e pardos em eleições passadas.
Denúncias on-line
Coordenadora do Observatório da Violência Contra a Mulher da Defensoria Pública da União, Rafaella Mikos Passos disse que trabalha desde o início do ano para capacitar os defensores e defensoras para reconhecer e prestar a assistência devida no caso da violência política de gênero.
Para estas eleições municipais, a defensoria lançou um programa de enfrentamento a esse tipo de violência, possibilitando que as vítimas façam denúncias também por meio de formulário on-line, além das unidades físicas da defensora. Isso significa que mulheres de todo o território nacional podem receber assistência, mesmo no caso de não haver unidade da defensoria no município da vítima.