Hoje escrevo o centésimo artigo para a Coluna Amazonas Atual. O convite para integrar a equipe de colunistas veio da competentíssima e dedicada repórter Aldi Brito, da qual tenho grande orgulho por ter participado da sua formação em jornalismo. Meu primeiro artigo foi publicado nesta coluna em 24 de fevereiro de 2017. Escolhi o tema dos movimentos socioambientais na Amazônia para adentrar este espaço de debate tão importante nesta região. Desde então, venho integrando esta coluna ao lado de colegas brilhantes com os quais tenho enorme prazer em dividir o espaço de reflexão através da escrita de temas que nos ajudam pensar e entender melhor a Amazônia e seus grandes desafios.
A atual conjuntura brasileira não permite grandes celebrações e nem mesmo um açaí com amigos e amigas para comemorar o artigo de número 100. Por isso, resolvi comemorar retomando um dos temas anteriores para atualizar a reflexão nos dias atuais. Ao reler os títulos e recordar as discussões temáticas, me deparei com o artigo publicado em 24 de julho de 2019 de debateu o tema da ‘desobediência civil em defesa dos migrantes e refugiados’. O conceito de desobediência civil apresentado no referido artigo foi elaborado pelo filósofo americano Henry David Thoreau, em 1849. Thoreau foi considerado um dos filósofos mais influentes dos EUA e era respeitado por setores vinculados tanto aos grupos de esquerda quanto de direita do século IXX. Seu conceito de desobediência civil baseava-se na decisão de “não respeitar uma lei por achar que ela não faz o menor sentido e, por isso, ninguém deve ser obrigado a segui-la”. Esta orientação política pautada no protesto pacífico ganhou seguidores no mundo inteiro.
Na semana passada vivenciamos no Brasil um verdadeiro ato de ‘desobediência civil’ na perspectiva de Thoreau (1849). Em rede nacional de comunicação ouvimos de nosso líder maior, o presidente da república, a conclamação para voltarmos ao trabalho e “salvar a economia do país” ameaçado pelo corona vírus (Covid19). Mesmo não tendo sido baseada em decretos legais, a ordem de um presidente tem força política e, deveria ter base legal. Logo, não cumprir suas determinações implica em ato de ‘desobediência civil’. Mesmo diante dos apelos do presidente inconsequente, mais da metade de todos(as) os(as) brasileiros(as) continua em casa seguindo as orientações das instituições internacionais que cientificamente detém conhecimento para assegurar que se deve o isolamento social, zelar pela saúde e defender a vida acima das economias locais e mundiais.
A ‘desobediência civil’ como ato coletivo de milhares de brasileiros(as) segue orientada pela quase totalidade dos governadores, parlamentares, ministros e senadores da república que, diferentemente do presidente, entendem que o isolamento social é a principal atitude de proteção da saúde e defesa da vida.
Mais da metade da sociedade brasileira entendeu que desobedecer ao presidente é um ato de coragem e inteligência, de opção pela vida. E a ‘desobediência civil’ continuou mesmo depois das carreatas promovidas pela elite comercial que vem apelando pela volta inconsequente ao trabalho, colocando a economia acima da vida dos(as) trabalhadores(as). Quem continua em casa entendeu que o mercado, com sua ‘necropolítica’, já decidiu quem deve morrer no Brasil: os operários das indústrias, os trabalhadores do setor de prestação de serviços e do mercado informal que representa uma cifra importante da renda nacional.
Protegida, dentro de seus carros importados, muitos deles blindados, a elite empresarial do Brasil, encorajada pelo presidente e vice e versa, tem convocado insistentemente a classe trabalhadora a voltar à seus postos de trabalho. Não é a primeira vez que isso acontece. E não é só no Brasil. Desde a Revolução Industrial (1760 – 1840) a classe trabalhadora vem sendo sacrificada em nome das economias locais e mundiais. Para as elites econômicas, guiadas pelo conceito da necropolítica, a vida dos(as) trabalhadores(as) só tem valor se estiver relacionada diretamente com a produção. Caso contrário, são vidas descartáveis que não interessam ao mercado.
Tomo aqui o conceito de necropolítica desenvolvido pelo filósofo negro, historiador, teórico político e professor universitário camaronense Achille Mbembe. Para este teórico, a necropolítica é quando o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer, ou quando o Estado se deixa orientar por elites econômicas que negam a humanidade de determinados grupos sociais, permitindo um estado de violências que levam à morte. A necropolítica se baseia “no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder” afirma Mbembe em seu livro publicado no Brasil em 2018, pela editora N-1.
Por isso, a ‘desobediência civil’ em defesa da vida no Brasil é também um ato de rejeição à necropolítica. É uma tomada de posição política que coloca a vida acima da economia. Desta forma, encerro este centésimo artigo embalada pelo verbo ‘esperançar’ que nos move neste Brasil de contradições e resistências. Que venham muitos outros 100 e longa vida à Coluna Amazonas Atual!
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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