O recrudescimento das leis anti-migratórias nos Estados Unidos, as deportações de famílias inteiras ou parte delas separando pais de filhos menores e as imagens de corpos de migrantes, incluindo crianças de colo boiando nas águas dos rios que fazem fronteira entre México e Estados Unidos chocaram o mundo na primeira metade deste mês de julho.
A sequência ininterrupta de ações policiais, julgamentos à revelia dos direitos dos migrantes e refugiados e o corporativismo das instituições políticas fizeram com que diversos grupos se manifestassem, de forma simultânea em regiões distintas dos Estados Unidos e em outros países nos últimos meses.
Na pauta de todos os protestos e atos públicos fundados no direito à manifestação pública, garantido na constituição de praticamente todos os países progressista, inclusive do Brasil e dos Estados Unidos, estava a defesa do ato de migrar e a garantia dos direitos dos milhares de refugiados espalhados pelo mundo inteiro.
Entende-se refúgio como um direito definido e garantido pelo ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os refugiados). De acordo com os parâmetros legais do ACNUR, “refugiado é toda a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer regressar ao mesmo, ou devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outros países”.
Migrante é toda pessoa deslocada em busca de melhores condições de vida. É um direito buscar melhores condições de vida. É um direito não deixar a família padecer de fome e miséria. Mas, este direito não está sendo respeitado nem garantido. A quantidade de migrações no mundo aumentou 41% entre os anos de 2000 e 2015 e alcançou um total de 244 milhões, conforme um relatório Organização das Nações Unidas (ONU). De 2016 até agora, as migrações têm aumentado exponencialmente no mundo inteiro como resultado da piora nas condições de vida da classe trabalhadora. Sem emprego e sem perspectivas, milhares de pessoas deixam seus países em busca de trabalho e melhoras.
Duas categorias humanas em discussão: o migrante e o refugiado. O que elas têm em comum? Grupos de pessoas sensíveis ao drama humano migrantes e refugiados no mundo inteiro que se manifestam em sua defesa. Foi isso que aconteceu na última semana no Senado dos Estados Unidos. Um grupo de manifestantes usou o direito da desobediência civil organizada para manifestar sua indignação frente à repressão que o governo norte-americano tem impetrado contra migrantes e refugiados.
Em um ato de extrema coragem, pessoas vinculadas ao movimento Colomban Center (grupo de defesa e sensibilização em favor dos migrantes), religiosos missionários ligados à Conferência dos Superiores Maiores de ordens religiosas, à Conferência Jesuíta do Canadá e dos EUA, missionárias ligadas à Conferência das Religiosas dos Estados Unidos, e missionários leigos vinculados à Pax Christi EUA, promoveram uma manifestação de desobediência civil contra as políticas de imigração implementadas na fronteira, em particular as medidas contra as crianças migrantes.
Mais de 70 religiosos(as) e missionários(as) leigos(as) foram presos por causa da desobediência civil. Dentre os detidos, uma personagem chama a atenção do mundo inteiro através de uma imagem que circulou rapidamente por todo planeta. Trata-se de uma foto do ato da prisão da Irmã Pat Murphy, de 90 anos, que trabalha com migrantes e refugiados em Chicago. O crime cometido pela religiosa? Há 13 anos organiza, todas as sextas-feiras, uma vigília de oração em frente à agência de migração de Chicago. Essa vigília de oração é considerada um ato de desobediência civil e, por conta disso, Irmã Pat Murphy foi presa.
Quem criou o conceito de desobediência civil foi o filósofo americano Henry David Thoreau, em 1849. Thoreau foi considerado um dos filósofos mais influentes dos EUA e era respeitado por setores vinculados tanto aos grupos de esquerda quanto de direita do século IXX. Seu conceito de desobediência civil baseava-se na decisão de “não respeitar uma lei por achar que ela não faz o menor sentido e, por isso, ninguém deve ser obrigado a segui-la”. Esta orientação política pautada no protesto pacífico ganhou seguidores no mundo inteiro. Dentre os mais influentes destacam-se o líder indiano Mahatma Gandhi, que entrou em contato com a obra de Thoreau em uma prisão na África do Sul, virou lenda depois de adotar uma versão pacífica da desobediência civil contra os ingleses em 1930. Orientado pela desobediência civil, Gandhi caminhou quase 400 quilômetros rumo ao vilarejo litorâneo de Dandi, acompanhado por uma multidão de seguidores que desencadeou um processo de insurreição popular que culminou com a independência da Índia.
Outro seguidor da desobediência civil foi o pastor protestante Martin Luther King, líder do movimento por direitos civis nos EUA na luta contra a segregação racial.
Luther King entendia que objetivo da desobediência civil não é quebrar a lei e depois escapar das consequências. Pelo contrário: é se submeter voluntariamente à prisão e até à morte. Quem comete uma infração para denunciar uma injustiça pretende usar o próprio sofrimento para chamar atenção para sua causa, e não escapar das sanções. Para Luther King, “qualquer homem que desrespeite a lei porque sua consciência lhe diz que é injusta e aceita a pena (…) está, naquele momento, expressando o mais elevado respeito à lei”.
Diante disso, conclui-se que a desobediência civil em favor dos migrantes e refugiados é um ato legítimo e digno de todo respeito. Por isso, os missionários(as) e leigos(as) presos perfilaram seus corpos no saguão principal do Senado Americano em forma de cruz entoando em coro os nomes das crianças mortas nos centros de reclusão de migrantes e refugiados. O sofrimento dessas pessoas presas num ato de extrema alteridade seja um ato de inspiração na luta por direitos e por soberania. A eles e elas, nosso respeito e reconhecimento por sua coragem e profecia.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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