A violência estrutural criou, em grande medida, as condições sanitárias e ambientais para que se formasse o novo coronavírus, produzindo a pandemia que está convertendo as cidades em necrópoles.
Nesse sentido, a pandemia de Covid-19 apenas representa, como uma caricatura, a consequência atualmente mais impactante da violência estrutural – o modelo necroeconômico e necropolítico vigente.
A necroeconomia
A necroeconomia, imposta pelos mais poderosos às demais nações do planeta, favoreceu a proliferação das “cidades da morte” na medida em que impossibilitou que a saúde pública fosse promovida e efetivada como um direito fundamental das pessoas em geral.
A pandemia do novo coronavírus desmistificou o atual modelo econômico e financeiro, revelando o quanto estão desfigurados os sistemas de saúde por toda parte, despreparados para atender a efetiva necessidade da população por socorro emergencial, por atendimento médico e hospitalar minimamente compatível com as exigências da saúde pública e da dignidade humana.
O necroneoliberalismo sempre tratou a saúde coletiva, a saúde pública, o saneamento básico, as questões sanitárias como mero produto ou mercadoria só efetivamente acessível aos que podem pagar caro por elas.
Em lugar algum os sistemas de saúde estão dando conta dos infectados e dos adoecidos graves pelo novo coranavírus. Isso revela o grau de gravidade da atual crise sanitária e assistencial. O modelo socioeconômico predominante nunca se preocupou efetivamente disso. E os números de óbitos não param de crescer. Em certos países, as mortes aumentam em proporção geográfica, fabricando assim as cidades da morte ou necrópoles.
A necroeconomia representa ainda um grande risco de retrocesso a processos econômicos predatórios, exclusores, baseado em relações precarizadas de trabalho ou mesmo em trabalho semiescravo, movidos à mera concentração e financismo especulativo.
A necropolítica
O ambiente político e as disputas pelo comando do poder estatal estão contaminados pela guerra da desinformação e manipulação (fakenews), pondo em sério risco a democracia.
Há riscos efetivos de vários países degenerarem politicamente para autoritarismo e o obscurantismo científico e cultural, sobretudo levando em conta o perfil de certos líderes atuais (Trump – EUA; Putin – Rússia; Xi Jinping – China; Maduro – Venezuela; Bolsonaro – Brasil…). Essa possibilidade macropolítica constitui um real retrocesso à Era dos Direitos e da Cidadania, caracterizada pela expectativa de defesa e valorização dos direitos fundamentais à dignidade humana.
O autoritarismo pode se configurar uma espécie de subproduto da necropolítica. Em regra, é interdependente de modelos econômicos socialmente degenerados, produtores de semiescravos, de subtrabalhadores, de espoliados, de desolados sociais, de vulneráveis e invisibilizados sociais. O autoritarismo impõe a censura, a perseguição, a violência e a assepsia social de modo abusivo e arbitrário. É o “sonho de consumo” cultuado por egocratas, plutocratas, milicianos, cleptocratas, certos militares e fanáticos pelos regimes de força.
Os adeptos e seguidores da necropolítica não se importam com a produção de cadáveres nem zelam pela saúde da população em geral. Não priorizam políticas públicas para evitar doenças, epidemias e pandemias. Não se incomodam em descartar os pobres, os invisíveis, os idosos, dos doentes pobres e demais vulnerabilizados socialmente. Importam-se, na realidade, tão somente com aqueles que lhes servem aos seus interesses econômicos e de manutenção no poder.
Nos cálculos da necropolítica não entram políticas para promover a dignidade dos empobrecidos, dos excluídos, dos sem teto, das mulheres vítimas de violência, das crianças e adolescentes, dos diversos socialmente e todos os que estão expostos aos riscos do cotidiano, submetidos diretamente à insegurança pública.
A necropolítica faz coro com a necroeconomia de que a saúde pública, o saneamento básico, as questões sanitárias e ambientais são mercadorias acessíveis somente aos que por elas podem pagar. Não devem ser prioridades estatais, mas negócios privados.
Necropolítica no Brasil
Paralelo à monumental luta contra a pandemia de Convid-19, no Brasil, tem-se que combater também as tendências e posturas nocivas à democracia e às instituições democráticas, bizarramente fomentadas pelo no atual ocupante da presidência da República.
Enquanto o número de infectados e de óbitos causados pelo novo coronavírus aumenta, investe-se na polarização da sociedade e em aglomerações para legitimar atentados contra a própria democracia. Tudo o que importa é a viciada jogatina pela manutenção do poder. Nesse contexto, o atual chefe do Executivo e sua prole procuram instigar as polarizações, acentuar as hostilidades com vistas a produzir possíveis distúrbios civis que venham a justificar a imposição de um regime de força, um novo golpe, outra ditadura.
O gabinete do ódio opera a todo vapor, alimentando as redes sociais de avalanches de fakenews que tentam legitimar o inaceitável: a intervenção militar, o AI-5, o fechamento do Congresso, do STF e outras reivindicações atentatórias contra o regime democrático de direito. Por conta dessa criminosa manipulação, certos grupos dão mais ouvidos às fakenews e aos arroubos do “imperador” do que aos resultados das pesquisas científicas.
Não achando suficiente o caos, o atual presidente resolveu, em plena crise pandêmica, demitir o ministro da saúde por este, em cumprimento às recomendações científicas da OMS (Organização Mundial da Saúde), priorizar o isolamento social e não se curvar aos palpites irracionais do mandatário da presidência.
A Covid-19 se expande, causa perdas e danos pelo mundo todo, mas, no Brasil, o presidente continua a passar mensagens nocivas à sociedade brasileira, fazendo o inverso do que recomenda a OMS (Organização Mundial da Saúde), a ciência e as autoridades da área médica, indo ao encontro de populares aglomerados em prol de pautas antidemocráticas e ilegais no atual ordenamento jurídico brasileiro.
A preocupação das autoridades médicas e da saúde aumenta à medida que a contaminação viral se expande no país e infecta regiões menos assistidas, mais vulneráveis, expostas à pobreza e à exclusão social, nas quais os meios são muito mais escassos, num momento em que o colapso do sistema único de saúde (SUS) já é uma realidade. No entanto, para os empoderados nesse tempo pandêmico, importa mais o cálculo eleitoral decorrente da extrema manipulação econômica, ideológica e política das massas arrebanhadas sem descartar a possibilidade de golpe, de fechamento das instituições democráticas e do retrocesso ao autoritarismo político. A violência estrutural multiplica as necrópoles.
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