O apagamento da memória pode ser terrivelmente nocivo à segurança pública de uma sociedade, impactando os grupos que a formam, suas instituições, seu desenvolvimento, suas perspectivas, produzindo nefastas consequências, a exemplo da reciclagem da cultura do ódio.
Essa cultura perversa do ódio, que ressurge na atualidade impulsionada pelo apagamento da memória e pela avalanche informacional de qualidade questionável das mídias e redes sociais, já produziu multidões de cadáveres ao longo história, movida pelo ímpeto da conquista, da ambição desmedida, da intolerância, da ignorância e que culminou muitas vezes no genocídio de povos e no extermínio de culturas e sociedades.
São conhecidas as horrendas chacinas de regimes totalitários, como as provocadas pelo fascismo e o stalinismo. Massacres recentes, pós-segunda guerra mundial, movida pela ideologia nazista da superioridade étnica ariana, ocorreram em Ruanda com cerca de 800 mil vítimas, 1994; na antiga Iugoslávia, atual Bósnia, em 1995, com mais de 8,5 mil assassinatos, fora os torturados e feridos, voltada para pureza racial; em Mianmar, em 2012, matanças de budistas contra muçulmanos. E os inúmeros atentados de fundamentalistas muçulmanos e supremacistas brancos, em diferentes momentos, que já vitimaram milhares de pessoas. No Brasil, é longa a lista de mortos e desaparecidos políticos na ditadura militar.
Apagar a memória desse rastro de violência, de crimes, de regimes opressivos, ditatoriais, totalitários, que resultaram em consequências nefastas no transcorrer do tempo, consiste em algo muito perigoso e denota certa cumplicidade para com desdobramentos da cultura do ódio, tais como a xenofobia, o racismo, a misoginia, o feminicídio, as diversas formas de escravismo, a homofobia, as chacinas étnicas e de grupos sociais diversos.
Esquecer elementos essenciais da memória pode desfigurar a história enquanto condena quase todos à mentira, à manipulação, à exploração opressiva, à tirania, à violência, à insegurança e ao aniquilamento sociocultural e físico. Não se descaracteriza a memória impunemente, pois ela é parte de quem somos e da história que construímos. A memória é uma espécie de “eu” herdado e expandido em cada indivíduo socializado por uma cultura.
O apagamento da memória é demasiadamente prejudicial ao desenvolvimento da coletividade, uma vez que a memória guarda, revela e denuncia as consequências da cultura do ódio ao longo da história, manifestas inúmeras vezes sob a forma de perseguições, de subjugação, de discriminação, de violências e crimes praticados contra adversários políticos, contra refugiados, contra migrantes, contra negros, contra indígenas, contra mulheres, contra pobres, contra pessoas socialmente vulneráveis e invisibilizadas, contra nortistas, contra nordestinos, contra indivíduos sexualmente diversificados, contra povos e etnias.
No decurso do tempo, foram sendo registrados diversos modos de apagamento da memória. Ao lado das já mencionadas, existem outras conhecidas há tempos, como também formas mais atuais de apagamento de memória, moldadas com base nos recursos e ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente, tais como as fake news e as avalanches de desinformações, inerentes ao contexto de pós-verdade.
São maneiras de apagamento da memória, desde o passado remoto, aquelas operadas através das seguintes vias, desdobradas em geral da cultura do ódio, e que impactam nocivamente a segurança pública:
- da chamada “queima de arquivo”, prejudicial às investigações, favorável à impunidade, pode comprometer a fundamentação baseada em fatos verídicos, impedindo que se faça efetivamente a justiça;
- neutralização, silenciamento e eliminação de lideranças de movimentos sociais, indígenas, ambientalistas, trabalhistas, de adversários políticos; criação do inimigo a ser abatido, exterminado: Zumbi -1695-Quilombo dos Palmares/PE; Tiradentes-1792/RJ; Chico Mendes-1988/AC; Dorothy Stang-2005/PA, Marielle Franco-2018/RJ; lideranças indígenas, como Ajuricaba na Amazônia (séc. XVIII), bem como comunidades inteiras, desde a colonização até os dias atuais;
- cooptação, criminalização e sujeição de membros e de líderes de movimentos sociais e de processos políticos para aderir e impor narrativas que desfiguram a memória;
- imposição de versões: imposição da versão oficial, imposição da versão dos “vencedores”, versão dos dominantes, versão dos difusores da informação. Apagam-se as demais versões, a dos “vencidos” e aquelas que não interessam aos supostos “vencedores”. Trata-se de privar os “vencidos” dos direitos, bens, espaços, oportunidades e recursos a quem faz jus;
- apropriação do passado histórico: usurpa-se a memória alheia; usurpa-se de alguém, de um grupo, de uma coletividade, de um movimento, de um acontecimento, de uma entidade social, impondo falsas narrativas que deformam o passado histórico, como é o caso de alpinistas e mercenários sociais e políticos. Produzem-se falsos heróis, líderes, intelectuais, religiosos etc. Usurpa-se também a produção alheia. Não se dá os devidos créditos nem se reconhecem os legítimos autores. Práticas coloniais e também de violadores de propriedade intelectual (direito autoral). É frequentemente o caso de povos e de populações tradicionais da Amazônia, que desenvolvem conhecimentos tradicionais associados ao uso da biodiversidade, não têm seus direitos reconhecidos nem resguardados os valores do grupo ou de comunidades amazônicas (logospirataria);
- por meio da manipulação de números, dados e acontecimentos também se pode apagar a memória, sobretudo descaracterizando fatos, personagens e processos em narrativas falseadoras, fantasiosas ou ideológicas;
- a produção social de culpados pode levar ao apagamento da memória e justificar práticas inerentes cultura do ódio, por ex. contra indígenas, latinos, refugiados, palestinos, africanos, mulheres, gays, nordestinos, nortistas, dentre outros;
- a manipulação de álibis que alteram a narrativa, personagens, a cenário… podem levar ao apagamento da memória;
- atribuição de falsa autoria de delito (calúnia), de fatos, de eventos, de falas pode ter como desdobramento o apagamento da memória e impossibilitar a responsabilização penal, civil e histórica, mantendo a impunidade.
Os modos mais recentes de apagamento da memória, como exposto, estão relacionados ao uso das tecnologias da informação de maneira a produzir grande quantidade de desinformação e de falsa informação (fake news), as quais são celeremente difundidas, “viralizando”, e gerando ondas de confusões, de polarizações, de divisões, discursos de ódio pela internet e redes sociais, que por vezes resultam em práticas violentas e criminosas. Manipulam-se os sentimentos, as emoções, os desejos e os elementos irracionais das pessoas, vinculando-os a ideologias, grupos, movimentos e práticas imprevisíveis. Apesar dos riscos, a propaganda, a internet, as redes e mídias sociais vêm se constituindo na via mais empregada atualmente para proceder ao apagamento da memória – verdadeiras máquinas de produzir pós-verdade em massa.
Os recicladores do ódio empenham-se para apagar a memória, silenciar o passado, recorrendo à irracionalidades, com vistas a impor suas visões de mundo, vontades arbitrárias, e dominação obscurantista e opressiva. Governos têm sido destituídos e também eleitos com base em fake news e nas torrentes de pós-verdade. Chegou-se ao ponto, sem qualquer base racional nem lógica:
– de questionar a aplicação de vacinas;
– de negar a forma esférica da terra e a ida do homem à lua;
– de tentar opor-se à ciência;
– de desqualificar o esforço pela proteção do meio ambiente como sendo algo ideológico;
– de desmontar instrumentos estatais para lidar com crises ambientais;
– de negar os dados técnicos do Inpe sobre as queimadas na Amazônia;
– de abandonar tratados e protocolos internacionais em defesa da qualidade ambiental planetária;
– de tentar reduzir as questões de segurança pública à ampliação do acesso às armas.
E por aí seguem, mesmo carecendo de fundamentação racional elementar, os recicladores da cultura do ódio e do obscurantismo político. As práticas obscurantistas limitam o discernimento cognitivo, precarizam o entendimento e a lúcida compreensão das coisas, dos processos, das relações sociais e das relações interpessoais. Favorecem regimes de força e de dominação opressiva. O obscurantismo político encontra ambiente favorável na cultura do ódio e do entorpecimento ideológico, marcado pela corrupção sistêmica e pelo dogmatismo totalitária. Com isso, o obscurantismo político cria sérios óbices à edificação de sociedades livres, justas e seguras.
O obscurantismo fomenta a insegurança, os extremismos e a logospirataria. Quando toma dimensão sistêmica, o obscurantismo gera sociedades subdesenvolvidas, entrevadas culturalmente, exclusoras politicamente, de grande dependência econômica, marcadas por extremas injustiças, desigualdades sociais e pela corrupção institucional. A sociedade obscurantista é danosamente impactada pela criminalidade e pelo encarceramento em massa.
Nesse sentido, busca-se ocultar ou suprimir a memória e mutilar a verdade histórica, impondo a versão ideológica ou fantasiosa ou simplesmente despótica dos acontecimentos, personagens e processos. Investe-se na mistificação de falsos líderes como heróis e mitos ao invés de apontar os erros e equívocos para que se aprenda a evitá-los. Um tipo de apagamento e usurpação da memória em proveito próprio, do próprio clã, e da forma de dominação, contudo, extremamente danoso à sociedade, impondo o esquecimento (relativizar a escravidão; precarização das relações de trabalho, e outras formas sociais opressivas; negar o racismo, a injustiça social, a misoginia, a xenofobia, o preconceito, a exclusão social, a homofobia etc) com vistas a predominar uma narrativa parcial dos fatos, assentada na ideologia do inimigo, para exercer um tipo de domínio político obscurantista e socialmente perverso.
O apagamento da memória constitui um violento processo de usurpação de elementos da história de grupos e de formações coletivas, operada pela reciclagem da cultura do ódio, que concorre para a violação a direitos fundamentais, para a privação da justiça social, para desqualificar o apelo por processos políticos mais transparentes, inclusivos, participativos, ambientalmente responsáveis, e capazes de incorporar o diálogo com minorias e sujeitos socialmente diversificados ou divergentes (indígenas, negros, mulheres, refugiados, migrantes, vulneráveis socialmente, entre outros). Resguardar a memória é imprescindível à história.
Conhecê-la, como admitem tantos, é fundamental para que se evitem os mesmos desacertos. Ignorar os erros cometidos no passado pode nos deixar aprisionados aos mesmos, vivendo em ciclos de retrocessos, de ódios, de violências e de tragédias humanas. Por essas razões, é necessário desenvolver meios de preservar e até mesmo reconstruir a memória, em especial daqueles períodos ou experiências históricas que se constituíram em grandes equívocos, erros e aberrações, como ditaduras, guerras, chacinas, extermínios, crimes e injustiças contra a dignidade humana.
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