A recaída na valorização da cultura do ódio tem resultado quase sempre em ondas nefastas de violência e de insegurança pública. Ela é fomentadora da injusta desigualdade social, do racismo, da homofobia, do feminicídio, da violência sexual, da corrupção, de instabilidades que põe em risco a segurança jurídica de regimes democráticos, operando em prol de regimes políticos autocráticos. É retrocesso em termos de cultura política e de segurança pública.
Mas por que odiar? O que está por trás da reciclagem do ódio? Quais os impactos decorrentes da cultura do ódio? Por que certos “líderes”, empoderados com base em fakenews, manipulam o medo, o ódio e impulsos tribais primitivos como método de fazer política?
Há estudiosos que afirmam ser o ódio resultado da ignorância ou da pressa em pôr nosso instinto de sobrevivência, ou qualquer outro objeto de nosso interesse, antes da capacidade de refletir, de entender, de compreender e de ser empático.
Nessas situações, segundo cientistas sociais, antes que se faça a necessária reflexão, optaríamos pela vitimização, pelo medo, pela ansiedade, pela sensação de ameaça, pela busca irracional de satisfazer nossas ambições, dentre outros impulsos primários e manipuláveis, cujos efeitos culminam frequentemente em ocorrências danosas.
Seria assim em relação aos grupos, às tradições, às ideologias, às religiões, às formas sociais diferentes da nossa. Seria assim não somente com relação ao time de futebol, mas também referente ao gênero, à raça, à origem étnica, à classe social, ao partido, à política, à economia etc. Qualquer aspecto poderia se nocivamente moldado pela cultura do ódio, pela manipulação do medo e dos instintos primários de sobrevivência dos indivíduos. Ainda mais num contexto agravado pela persistente crise socioeconômica e pelo esgotamento de viciados modelos político-eleitorais-partidários, que não têm como dar resposta à altura dos problemas.
Já é de certo modo conhecido o processo de reciclagem da cultura do ódio. Primeiro, busca-se firmar identidades ou singularidades ou diferenciações que não podem admitir o outro, o diferente e muito menos o divergente, estabelecendo distinções radicais entre “nós” e “eles”. A partir daí, recorre-se à ideologia do inimigo para impulsionar o apelo ao ódio e à vitimização: tudo o que é “nosso” presta, é bom, é bonito, importa, e deve ser defendido, inclusive por via da violência e das armas; o que é “deles” é mal, errado, feio, reprovável, odioso, deve ser banido e exterminado. Nos últimos anos, infectaram-se as redes sociais e a internet com peças e imagens retóricas eivadas do discurso de ódio. As mídias convencionais e sociais foram empregadas como ferramentas para banalizar a vitimização e o ódio.
Em meio a isso, aparece algum “líder” ou “líderes”, carismáticos ou não, que fazem repercutir torrentes de lama do discurso odioso e se ocupam em simular terem todas as respostas, serem os “portadores das soluções”, os grandes “enviados para resolver” os problemas e “salvar a pátria”. Séquitos de desavisados, de inocentes úteis ou mesmo de interesseiros aderem à criação desses personagens políticos e os convertem em “mitos”.
O “personagem-mito” reforça o apelo ao discurso de ódio, prega o medo, suscita a vitimização, pondo a maior parte na defensiva contra o virtual “inimigo” enquanto tenta passar desapercebido na busca de ampliar os próprios poderes em detrimento da autonomia das instituições de controle, blindar-se contra investigações “inconvenientes”, impedir a transparência, fomentar mais divisão da sociedade para dominar com base na demagogia, no obscurantismo e na irracionalidade. Suas ações nem sempre revelam o que realmente pretende. Mas usa de provocações, censuras e perseguições em grau cada vez maior. No Brasil, chegou-se a cogitar recentemente a reintrodução de um novo “AI-5”.
Outra tática dos recicladores do ódio é silenciar a memória e reinventar o passado à luz de suas visões de mundo, de suas vontades arbitrárias, de seus rumores e de suas boatarias. A propaganda, a internet, as redes e mídias sociais são bastante empregadas das pra isso – máquinas de produzir pós-verdade histórica em massa. Trata-se de ocultar ou de deformar a verdade histórica, impondo a versão ideológica ou fantasiosa ou simplesmente despótica dos acontecimentos, personagens e processos. Ao invés de apontar os graves equívocos do passado, aprendendo com os mesmos para preveni-los, retomasse os mesmos como feitos heroicos e marcos de vitória ou de virtude. Uma espécie de apagamento abusivo e usurpação da memória em proveito próprio, impondo o esquecimento (negar o holocausto indígena, judeu, curdo; relativizar a escravidão e outras formas sociais opressivas) com vistas a fazer prevalecer uma narrativa parcial dos fatos, muitas vezes visando a autopromoção, e reforçar a ideologia do inimigo contra quem os recicladores do ódio classificam por “eles”: o outro, o diferente ou divergente.
Em relação a “eles”, o discurso de ódio é que somos vítimas, temos medo, precisamos nos sentir sempre ameaçados. Já não “vemos” a intolerância nem o preconceito, os injustos “pesos e medidas” nem as exclusões, as violências nem os crimes praticados em nome de nossa proteção. Só o que somos, fazemos, temos e queremos é bom, é o que conta, é o certo. E vamos aumentando a distância, tensionando as relações, alimentando ódios e inventando desculpas para acobertar injustiças, violências e delinquências. Quanta tortura, corrupção, genocídio, chacinas, matanças, privações de liberdade e crimes bárbaros não foram “justificados” a partir da cultura do ódio, da polarização extrema, da banalização do mal para dividir e dominar a sociedade?
A lista não é curta, ainda que limitada ao último século. Os nazistas em relação aos judeus. Os fundamentalistas islâmicos contra os judeus e o Ocidente. Os judeus em oposição aos palestinos. O atual governo norte-americano em contraposição os migrantes e refugiados pobres. Os supremacistas brancos em objeção aos negros, latinos, asiáticos e também judeus. Os fascistas contra os socialistas e comunistas. Os “de direita” em antagonismo aos “de esquerda”. Uma polarização que vai se tornando perigosamente extremada e repercute na vida individual, coletiva, institucional, impactando a segurança pública e a qualidade de vida.
A cultura do ódio, da vitimização, do medo, muitas vezes instrumentalizada para legitimar a economia das armas e a ideologia do inimigo, procura instigar mais e mais na divisão dos grupos e de coletividades. Toleram-se menos as pessoas, sobretudo as diferentes e divergentes. Desfazem-se famílias e grupos de amigos. Criam-se rivalidades disfuncionais entre instituições e dividem-se até mesmo países inteiros. Nesse cenário, quase sempre passam por cima de princípios e valores básicos. Atropelam-se mulheres, negros, pobres, crianças, adolescentes, indivíduos e segmentos socialmente mais vulneráveis, dentre outras categorias sociais. Arrefece-se a sensibilidade humana e a disposição à empatia. Predomina a irracionalidade, o embrutecimento, a desumanização.
Será que desse jeito chegaremos realmente a constituir uma nação ou ao menos um país? Será que “esticando a corda” ao máximo, ofendendo, agredindo, violentando ainda que simbolicamente, alijando as pessoas de direitos fundamentais estaremos indo em direção à civilização ou à selvageria? Será que as coisas, a vida social, e tudo o mais só importa quando estamos no absoluto controle da situação? Será que apenas “nós” somos sempre os detentores da verdade e os únicos legitimados para construir uma sociedade livre, justa e próspera?
De tais ilusões estão convictos os que odeiam. Odeiam e pronto, não precisam sequer de alguma racionalidade, sobretudo diante do diferente, do outro, do divergente. E já não há espaço para realmente favorecer alguma reflexão lúcida ou exercitar o discernimento crítico. Apenas “certezas” que se arrastam no tempo em meio a uma bárbara trilha de sofrimento, de violência, de corrupção e de criminalidade movida pela cultura do ódio.
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