É extremamente preocupante privilegiar a “ideologia do inimigo”, ou o “direito penal do inimigo”, e a converter em padrão para lidar com os problemas de insegurança pública.
A ideologia do inimigo, raiz do recente direito penal do inimigo, foi empregada como base de experiências totalitárias de governo, regimes de extermínio, genocidas, governos produtores de atrocidades, torturas, horrendas truculências, tais como aquelas que caracterizaram o fascismo, o nazismo, o stalinismo e outras aberrações decorrentes do exercício obscurantista e logospirata do poder. É flagrantemente aterrador e vergonhoso que instrumentos da ideologia do inimigo, empregados no passado recente (1968) como o sombrio AI-5, voltem a ser cogitados, inclusive por um governo eleito pelos cidadãos.
Essa ideologia sequer pode ser considerada de segurança pública, devido à frequência de seus nefastos resultados, podendo ser suportável tão somente em situações muito raras, excepcionais e extremas de insegurança pública, tais como guerras entre grupos ou facções, tiroteios, quadros gravosos de ameaça à população e seus territórios, e outras que requeiram medidas de força e intervenções armadas.
Isso porque, com base na ideologia do inimigo, não seriam conferidos a certas pessoas os direitos e garantias, matérias e processuais penais, concedidos aos demais cidadãos (“amigos” do governo ou do regime).
De acordo como jurista alemão Gunther Jakobs, que introduziu o conceito de direito penal do inimigo em 1985, existiria um direito penal do cidadão e um direito penal do inimigo. Fundado neste último, caso alguém seja classificado como “inimigo” da sociedade, do Estado ou do governo (por extensão: inimigo do partido hegemônico, da corporação X, do grupo N etc), poderá ser perseguido e punido por todos os meios disponíveis, sejam estes quais forem. É algo abominável e desestrutura toda a concepção de direitos humanos e o sistema de direitos e garantias.
Não obstante a potencialidade de todos esses graves retrocessos, percebe-se a o perigoso alastramento dessa venal ideologia, até compreensível no caso de instituições militares e reprovadamente típica de organizações criminosas (máfias, quadrilhas, facções), no atual momento histórico. A ideologia do inimigo respaldou a tese do “ataque preventivo” da doutrina Bush, dentre outros representantes de Estados. No Brasil, ela vem sendo prestigiada, difundindo-se rapidamente, e tenta justificar o indefensável: matanças, chacinas, selvagens massacres, assepsias sociais etc. O atual contexto regido pela pós-verdade é ambiente propício ao reflorescimento dessa facínora ideologia, cujas expressões se manifestam em instrumentos de violência política e cívica como o cogitado AI-5 (1968, durante o governo ditatorial de Arthur Costa e Silva) ou no recuo a teses retrógadas como a do bandido na concepção lombrosiana (Cesare Lombroso, 1835-1905).
A ideologia do inimigo não deixa de ser uma visão peculiar de quem “é do crime”, dentro ou fora dos presídios, ou de quem lida com a guerra, no caso as corporações militares e forças armadas. Tal ideologia vinha figurando como algo inadmissível, objeto de ojeriza, mas que as redes sociais e muitos desavisados passaram de repente a prestigiá-la. Geralmente é assim até que alguns desses que prestigiam essas teses trogloditas sofram “na própria pele” seus trágicos efeitos. O filme, intitulado no Brasil “O menino de pijama listrado”, expõe com clareza isso.
Em sociedades profundamente marcadas pela injusta desigualdade social, como a brasileira, latina-americana, indiana e outras, a ideologia do inimigo tende a vitimar covardemente os mais vulneráveis socialmente. São aqueles que mais precisam de ações de inclusão social, de assistência social, de saúde, de educação, de lazer, de segurança pública, ou seja, os moradores de morros, de favelas, de periferias, os imigrantes, os refugiados. Um público frequentemente constituído, em grande parte, por crianças, adolescentes e jovens muito empobrecidos.
A ideologia do inimigo operacionaliza a banalidade do mal, exposta consistentemente pela filósofa judia-alemã Hannah Arendt, a partir dos horrores protagonizados pelos nazifascistas, que se enquadravam perfeitamente na categoria “homens de bem”, sobretudo contra milhões de integrantes do povo judeu, durante a segunda guerra mundial.
Embora existam registros das horrendas consequências da ideologia do inimigo desde os tempos primitivos, a aplicação dessa ideologia como eixo de governo, refletida em políticas públicas como na área de segurança pública, vinha sendo superada há tempos pelo esforço de governos mais lúcidos e empenhados para com perspectivas de orientação democrática, fomentadores do desenvolvimento científico-tecnológico, em franca oposição ao obscurantismo polarizado que caracteriza o tempo atual, em diversos países, incluindo o Brasil.
A Segurança pública não se reduz nem pode se confundir, como regra, com a ideologia do inimigo. Evidentemente, podem ocorrer situações em que a intervenção ou mesmo o enfrentamento armado seja inevitável e disso resultem em vítimas fatais. No entanto, tratando-se de segurança pública, mesmo em seu caráter repressivo, a regra é o trabalho planejado, a inteligência policial, o planejamento tático-operacional, as operações policiais com as devidas prisões autorizadas judicialmente ou em flagrante delito. E não a matança, a chacina, o extermínio, principalmente de pessoas pobres, já privadas de acesso ao básico quanto à dignidade humana e à cidadania, em áreas desassistidas pelos entes estatais. Que mérito pode haver nisso? Desde quando isso pode ser considerado política de segurança pública? Pior ainda quando há vítimas inocentes. A aplicação sem lúcido discernimento da ideologia do inimigo na segurança pública produz resultados bárbaros, socialmente funestos e humanamente embrutecedores.
É claro que quando ocorrem matanças e massacres, protagonizados pelas forças de segurança, não é a polícia que aperta sozinha o gatilho que produz tantas vítimas fatais, entre as quais vítimas inocentes. Por trás dessa polícia que tanto mata (conhecida como a que mais mata no mundo) quanto morre (o policial também é descartável) está todo um sistema político e econômico perverso que cobra que ela aja assim. Um sistema que exige que a polícia descarte e proceda a assepsia social dos que não estão nele incluídos, a fim de tirar alguma vantagem ou dividendos político-eleitorais com essas mortes, movidas pelo populismo penal letal e por uma teia de corrupção e de abusos, montada desde a transferência de recursos públicos para nutrir as viciadas farsas eleitorais e partidárias até as ações na ponta.
Enquanto essa execrável e corrosiva lógica política for o fundamento para operar a segurança pública, restará ao país e ao mundo assombrar-se continuamente com chacinas, hecatombes e carnificinas, dentro e fora dos presídios, levadas a cabo por vezes pela própria polícia, como nos casos de Carandiru/SP (outubro de 2002), da Candelária/RJ (julho de 1993), de Vigário Geral/RJ (agosto de 1993), de Manaus/AM (madrugada de 20.10.2019, dentre outras ocasiões) e de outras cidades.
Não é á toa que a Constituição Federal da República do Brasil dispõe sobre segurança pública como direito fundamental sob três aspectos: o individual (art. 5, caput), o social (art. 6, caput) e o difuso (art. 144, caput), cabendo ao Estado o dever de preservar e promover esse direito tão essencial à sociedade brasileira, além de também impor a todos a responsabilidade para com a segurança pública.
Segurança pública constitui-se numa condição para realização de outros inúmeros direitos. Quando se subtrai a vida de alguém, impede-se o exercício de todos os demais direitos, inclusive o de um julgamento justo com a devida responsabilização penal, e a oportunidade de revisão de vida. Em caso de massacres ou matanças não há como voltar atrás, reverem-se as medidas e preservar a vida de inocentes vitimados. A lei, a ordem legal, suas instituições e órgãos só se justificam e legitimam se for para promoverem a vida, a liberdade, a igualdade e a segurança das pessoas e da sociedade, estabelece a Constituição. E não para produzirem chacinas sem que existam efetivas e iminentes ameaças de algo fatalmente danoso.
Por essas razões, é que segurança pública supõe uma fase de medidas preventivas, a fim de evitar que o direito seja violado, e outra fase constituída de ações repressivas, para fazer cessar situações ilícitas, condutas delituosas e responsabilizar penalmente seus autores, e não para a priori exterminá-los. Quando não é possível reaver o direito ofendido pela conduta criminosa, cabe ao Estado punir e impor o cumprimento de sanções penais, além das indenizatórias. Vingança, justiciamento, “justiça com as próprias mãos”, sem levar em conta a vida de inocentes, de vulneráveis socialmente desprotegidos pela omissão estatal, e o direito ao devido processo legal, não é nem nunca foi segurança pública. É mera e nefasta aplicação da ideologia do inimigo.
Segurança pública é o essencial direito às condições para que se possa dispor e exercer os demais direitos ou bens jurídicos. Essa noção não cabe nem se reduz, como regra, à mera e perigosa aplicação da ideologia do inimigo. Segurança pública, por fim, é direito fundamental sob três perspectivas coexistentes e interdependentes: individual, social e difusa, nunca a danosa perversão política-institucional representado pela ideologia do inimigo.
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