Os vícios e o obscurantismo informacional, além de se constituírem em fatores de violência e criminalidade, também impactam nocivamente a cidadania, principalmente na medida em que comprometem o discernimento e limitam a cognição, produzindo o entorpecimento das consciências, a mistificação de pseudo-heróis e a naturalização das injustiças, corrupções e disfuncionalidades sistêmicas.
O processo de viciação, muitas vezes acelerado pelo obscurantismo resultante de torrentes de informações de péssima qualidade, embasam o discernimento inteligível, inclusive obstaculizando o amadurecimento da capacidade cognitiva e dificultando o acesso à cidadania, seja qual for o perfil ideológico (direita, esquerda ou centro) do governo. Não é difícil de constatar que a pior cegueira é a falta de discernimento, pois ela resulta dentre outras coisas em graves problemas sociais.
Esse atrofiamento da lucidez e do discernimento, chamado por Milton Santos de confusão dos espíritos, reduz quando não inviabiliza completamente nosso entendimento acerca da realidade do mundo, do país, da política, da economia, da sociedade, das pessoas e de nós mesmos. Trata-se de uma perda significativa na capacidade de ler e interpretar o mundo e seus processos essenciais, bem como da própria condição pessoal e social nele. Uma forma de entorpecimento existencial e filosófico, que redunda em graves prejuízos políticos, sociais e econômicos. Uma redução do potencial cognitivo que resulta no definhamento da cidadania.
No lugar do discernimento lúcido, o processo de viciação e de obscurantismo informacional conduz ao entorpecimento das consciências, ao adestramento político e à domesticação ideológica voltada à mistificação dos “heróis” do poder e a produção de “mitos” políticos. Como se a sociedade necessariamente precisasse depender de “mitos” e “heróis”. Tenta-se esconder ou camuflar a prática das disputas viciadas pelo poder, do canibalismo eleitoral, do consumismo fútil, do fundamentalismo pelo dinheiro e pelas “riquezas”, vistas como “delícias” da civilização materialista, seja ela liberal, anarquista ou socialista.
Promove-se o leviano modelo do consumidor compulsivo ao invés do cidadão comprometido com um projeto de sociedade livre, justa e solidária. Patrocinam-se processos eleitorais, regimes políticos e sistemas de mercado regidos por interesses alheios ao interesse público e lícito, mas legitimados pelo poder das mídias sociais, da publicidade e da propaganda. A cidadania tornou-se um produto menor, assim como os serviços públicos passaram a um segundo ou terceiro plano na jogatina que condiciona o orçamento público ao pernicioso cassino partidário-eleitoral. A dignidade humana torna-se peça de retórica enquanto as coisas prevalecem sobre os sujeitos – item descartável.
Diante desse contexto, pode-se compreender, ao menos em parte, porque vinga predominantemente o lumpesinato político e uma práxis cívica medíocre, que conduz à uma democracia de fachada, a uma aparente ordem de mercado livre, movida por eleições periódicas, supostamente livres, que nada acrescentam ao país nem à organização política da sociedade brasileira. O empobrecimento social e econômico reflete a miséria política de um país que vive do engodo eleitoral. Por outro lado, é preciso dizer que isso não serve para justificar nenhum regime político fechado nem de força, mas apenas advertir que o joguete eleitoreiro está levando à morte a política maiúscula e a democracia, instalando gradualmente um totalitarismo disfarçado de administração pública, alcançando todos os campos: trabalho, instituições sociais, instituições de mediação política, empresas, relações interpessoais, invadindo até mesmo espaços antes destinados à livre pesquisa, ao refinamento das ideias e à manifestação do pensamento, como eram as universidades. Ensinou o mestre Milton Santos que “dessa forma, o território, o Estado-nação e a solidariedade social também se tornam residuais.”
Tais efeitos danosos à cidadania e à vida em sociedade são, em grande medida, reflexos do processo de viciamento e de obscurantismo informacional em curso, numa escala planetária, que servem principalmente às formas perversas do paradigma de globalização em vigência.
Uma sociedade de viciados, de dependentes e abatidos cognitivamente não pode resistir aos nefastos efeitos de uma organização econômica e política espoliadora. Não percebe nem sobrevive ao canibalismo político, econômico e cultural. Não consegue desmistificar o consumismo compulsivo que submete a todos às manipulações do mercado. Não é capaz de entender nem de enfrentar o fundamentalismo do dinheiro e os totalitarismos ideológicos, religiosos, políticos e mercadológicos em franca ebulição.
O obscurantismo informacional e o processo de viciação das consciências, em especial dos jovens, é uma ferramenta essencial para que os efeitos perversos da dominação econômica e política imposta não sejam claramente percebidos nem confrontados. O que a grande maioria pensa saber sobre liberdade, justiça, solidariedade e democracia é algo vago, genérico, quase inaplicável. É conveniente que continue assim. O discernimento e a lucidez são perigosos o modelo vigente. O vício e a avalanche obscurantista têm sua função e utilidade para a ordem sociopolítica e mercadológica cravada coercitivamente no seio da sociedade.
Formar discernimentos cognitivamente lúcidos que fomentem competências capazes de suplantar o obscurantismo, a viciação, a dependência e à domesticação ideológica, mercadológica, política, eleitoral é imprescindível para preservar o que ainda resta de democracia. É condição para combater os falsos “heróis” e criminosos “mitos”, endeusados por muitos, e que servem à mistificação que tenta legitimar a viciada jogatina eleitoral, partidária e econômica em vigor. O lúcido discernimento é essencial à promoção da cidadania e da vida política numa sociedade de perspectiva democrática.
O discernimento político, social e econômico é condição para manutenção de um regime político aberto e à consolidação do regime democrático em qualquer Estado, sendo ainda mais necessário ao Brasil, que foi dolosamente lançado no abismo do entrevamento ao invés de amadurecer, estagnado no lugar de ter se sido preparado para se desenvolver.
É imprescindível que a educação e os processos de socialização das pessoas sejam capazes de prover a lucidez e desenvolvimento cognitivo, a fim de garantir competências culturais, econômicas e políticas condizentes com as exigências socioambientais do novo milênio, promovendo as conquistas humanas irrenunciáveis, nascentes desde o iluminismo libertário, expressas na declaração dos direitos humanos, e na afirmação de pactos sociais e institucionais em prol da dignidade da pessoa humana, individual e coletivamente.
A sociedade não pode continuar sendo “presa” fácil dos diversos tipos de manipulação, da violência e de fanatismos fomentadas pelo processo de viciamento humano e pelo obscurantismo informacional. A opinião pública e as consciências em formação não podem persistir sendo vítimas de ideologismos e de falsas polêmicas, como aquelas típicas dos que, mesmo observando todos os dias que o sol e a lua são redondos, insistem em manter a sociedade distraída com a mistificação de que a terra é quadrada. Ou dos que insistem em desconsiderar dados de pesquisas científicas sérias para “fundamentar” suas “verdades” em meros achismos tão somente porque estão empoderados. Ou ainda vítimas da prática dos que insistem em tentar esconder e impedir a investigação de crimes praticados no passado recente simplesmente porque ocupam elevados cargos nos poderes públicos ou em instituições estatais. Deveriam, na realidade, adotar postura inversa: contribuir com as investigações para apurar os graves delitos de que são acusados, a fim de que se chegue à verdade e a justiça, se for o caso, possa inocentar os que não devem à sociedade. Como esclarece Jean de La Bruyere: “Depois do espírito de discernimento, o que há de mais raro no mundo são os diamantes e as pérolas”.
O logos da lucidez e do discernimento tem de prevalecer sobre o logospirata que atrofia a cognição, que obscurece a participação política, que aprofunda a injustiça social, que procura entorpecer e usar a todos como massa de manobra, sequestrando o entendimento ao ponto de impedir a formação de competências que trabalhem em prol de sociedades mais livres, justas e solidárias. O logos original tem que prevalecer sobre o entorpecedor logospirata. O logos real sobre o logos obscurantista. O logos lúcido sobre o logos viciado e dependente. O logos humano sobre o logos neomedieval. O logos da cidadania sobre o logos da corrupção, da exclusão e dos falsos mitos.
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