Insegurança e sistema carcerário no Brasil
O recente massacre de presos, ocorrido na manhã da última segunda-feira (29.07), no presídio de Altamira, município no sudoeste do Pará, retoma a questão dos efeitos da insegurança pública, via disputa entre facções criminosas, no interior dos cárceres brasileiros.
Segundo a Superintendência do Sistema Penitenciário do Pará (Susipe), no total, foram mortos 62 internos do Centro de Recuperação Regional de Altamira (CRRALT), dentre os quais 26 eram presos provisórios, ou seja, quase metade aguardava julgamento. O presídio tem capacidade para 163 presos, mas estava ocupado mais que o dobro da população que deveria comportar: 343 presos. Um relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontou que, além de superlotada, a unidade prisional estava em péssimas condições.
O confronto entre as organizações criminosas “Comando classe A” e “Comando vermelho” causou 62 mortes entre os presos do CRRALT, tendo sido 41 por asfixia, 16 por decapitações, 1 por causa não informada, e outras 4 por estrangulamento durante a transferência de presos num caminhão-cela, na quarta-feira, dia 31 de julho.
Mais um selvagem massacre decorrente de um estado de coisas inconstitucionais – e quase surreais –, evidenciando a mais completa perda de controle do interior dos cárceres pelo Estado brasileiro em favor das facções criminosas.
Além das chacinas que já ocorreram (Compaj-AM, 2017 e 2019; Complexo de Aparecida de Goiânia-GO, 2018; Monte Cristo-RR, 2018; Alcaçuz-RN, 2017; CRRALT-Altamira-PA, 2019), motivadas por confrontos entre organizações criminosas ou por disputas entre membros de uma mesma facção, quantas mais terão de ocorrer para que medidas efetivas de segurança interna dos presídios venham a ser adotadas? Quando os estados recuperarão o controle interno dos estabelecimentos prisionais existentes no país? Há previsão para que as administrações penitenciárias aprendam a lidar com a realidade dos conflitos entre grupos e entre distintas facções criminosas no interior dos cárceres? Quando, afinal, serão adotadas providências compatíveis com o grau de complexidade da realidade prisional?
São questões que envolvem o sistema carcerário como um todo no país, não se limitando à execução penal, e constituem temas essenciais à segurança pública de qualquer ente federado – estados e união.
A própria administração pública e os órgãos que compõe o sistema de justiça criminal já admitem que o que se passa fora dos presídios impacta também a vida dentro deles, e vice-versa, inclusive as rebeliões, os massacres, os motins e a prática de delitos orquestrados do interior de unidades prisionais. O atual modelo de cárcere no Brasil, que deveria servir para punir e preparar o indivíduo para ser reinserido no convívio social lícito e livre, termina por convertê-lo, via de regra, em alguém pior, que usa a prisão para praticar outros crimes, vingar-se da sociedade, do cidadão comum, das autoridades, dos poderes constituídos, colocando-se a serviço de facções, de negócios do crime, da plutocracia, da contenda entre organizações criminosas pelo controle da economia do crime e da cizânia entre grupos que disputam a dominação do poder estatal.
Aliás, o vale-tudo dos “games” das disputas eleitorais e institucionais por cargos, recursos, funções, cargos em comissão, posições de influência no âmbito estatal etc, serve de modelo e acaba influenciando as querelas sociais, inclusive no âmbito da economia do crime e suas organizações e subfacções.
Paralelo a isso, lamentavelmente, persiste a limitada concepção de segurança pública, reduzida à mera prática de operações e ações repressivas de polícia, que geram o “glamour” midiático de prisões, mas que mascaram o drama de uma sociedade extremamente injusta e que priva de direitos básicos, desde muito cedo, a grande maioria de seus membros, excluída desde o nascedouro do elementar em termos de cidadania e dignidade humana.
Não é mera coincidência o fato da população prisional do país, em sua grande maioria, ser constituída de pessoas pobres, jovens, de baixa escolaridade, subprofissionalizadas, subempregadas, muito frequentemente até mesmo sem qualquer profissão, sem ocupação lícita e sem participação socialmente produtiva.
Em seguida, como se carecessem de racionalidade ou sofressem de amnésia, organismos sociais, instituições políticas e órgãos estatais interrogam-se sobre os motivos pelos quais os jovens e outros cidadãos foram fazer carreira na economia do crime. Buscam-se então justificativas pífias como as de que os atuais mandatos patrimonialistas, de ‘apenas’ quatro ou oito anos, são insuficientes para lidar com as questões de violência, de criminalidade e de insegurança pública. E assim tem-se conseguido, por décadas, legitimar uma forma de dominação política e econômica violenta, ineficaz em termos de justiça, de liberdade e de respeito à dignidade humana.
Na realidade, o cárcere como fábrica ou potencialização de criminosos, segundo Michel Foucault, em sua “Microfísica do Poder”, constituiu-se numa estratégia de utilização e manipulação pelas estruturas de poder daquilo que é um grande inconveniente: “A prisão fabrica delinquentes, mas os delinquentes são úteis no domínio econômico como no político.
Os delinquentes servem para alguma coisa.” (1992; 132) Não é difícil levantar o quão onerosos são os presídios e quanto lucram as empresas que os gerenciam. Porém, o histórico da gestão dos cárceres pelos entes estatais é desastroso, sendo em vários casos até muito pior.
O impacto dessa insolúvel problemática tem pesado, cada vez mais, de forma extremamente brutal e impetuosa sobre a sociedade, especialmente sobre os mais vulneráveis socialmente, pois são estes que inflam as cifras de encarceramento e de descarte (linchamentos, execuções, massacres e outras bestiais formas de assepsia social), reproduzindo a dor social e a sensação generalizada de insegurança pública, abandono material, moral e intelectual por parte das instituições sociais, estatais e econômicas.
Diante desse cenário, é essencial que se busquem alternativas para lidar com os problemas da segurança pública integrados às demandas e questões do sistema prisional brasileiro. É necessário procurar, reconhecer e aprender as boas práticas testadas e adotadas em unidades carcerárias no país e pelo mundo, muito embora as realidades regionais impliquem adequações e adaptações. É crucial aproveitar e partir das boas experiências, seja aonde for que elas existem, para edificar o próprio modelo e promover ações concretas com vistas a intervir na difícil realidade do sistema prisional brasileiro. Afinal, até quando permaneceremos sem ver alguma “luz no fim desse túnel”?
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