Criminalidade e impunidade
Existe certa relação proporcional entre criminalidade e impunidade. Pesquisam apontam que quanto maior a impunidade tende a haver maior violência e criminalidade. É a confirmação daquele antigo aforismo: “a violência anda de mãos dadas com a impunidade.”
A sensação de impunidade gera quase sempre muita indignação, em especial quando algum caso repercute no meio social. Não foi à toa que o recente caso de homicídio do sargento da polícia militar do Amazonas, Luís Carlos, vitimado na semana passada, produziu tamanha indignação não apenas entre os pares, nas polícias, mas em praticamente todos os segmentos sociais. Os autores foram capturados pela polícia e liberados em audiência de custodia. Isso deflagrou diversas manifestações de reprovação em diferentes mídias. E demonstrou como a sensação de impunidade, por mais que o julgador não tenha feito outra coisa que aplicar a lei, repercute na forma de uma indignação que mobiliza certa comoção social. A sociedade anda exaurida com a sensação de insegurança e sem paciência para tolerar certas soluções judiciais que não levem em conta o impacto junto à população. O problema é o risco dessa ansiedade popular por “justiça” exacerbar tendências irracionais nocivas à própria segurança pública e ao sistema de proteção dos direitos e garantias fundamentais.
Por outro lado, em razão da insuficiente capacidade do sistema de justiça criminal exercer no tempo adequado o dever de punir do Estado para atender as crescentes demandas da sociedade, não é incorreto entender que quanto maior a criminalidade tende a ampliar também a impunidade.
Muito embora o direito-dever de punir seja monopólio do Estado, este não tem dado conta da demanda, fora ainda a hipótese do erro policial-judicial, e, lamentavelmente, verifica-se a reavivada tendência de indivíduos e de grupos tentarem fazer “justiça com as próprias mãos”, incorrendo em eventos de barbárie.
A incerteza na garantia de punição e a crença na impunidade têm levado muitos a cometer bárbaros atos de vingança, seja por intermédio do exercício arbitrário das próprias razões seja por via de práticas de justiciamento, além de ser incentivo à prática de delitos. Com efeito, é remota a lição de que a impunidade é o maior incentivo à violência e ao crime: “O maior estímulo para cometer faltas é a esperança da impunidade.” – Cícero. Na modernidade, elucidou-se com maior clareza que: “Um dos maiores travões aos delitos não é a crueldade das penas, mas a sua infalibilidade (…) A certeza de um castigo, mesmo moderado, causará sempre impressão mais intensa que o temor de outro mais severo, aliado à esperança de impunidade.” – Cesare Beccaria; “O esquecimento é o adubo que nutre a impunidade” – Wesley Hayas. Esse entendimento é também já alcançou o Brasil há algum tempo: “O sistema de impunidade é também promotor de crimes.” – Marquês de Maricá.
Responsabilizar o infrator e, de modo efetivo, punir o delinquente é essencial para combater a violência, reprimir a criminalidade e impedir que a mesma fuja ao controle. Contudo, a maneira mais eficaz de enfrentar a impunidade é evitar que o crime aconteça, isto é, trabalhar e educar para prevenir a prática de delitos. É usufruir da vida com liberdade e justiça, não viver com medo e armado, achando que só com mais violência, repressão e prisões se resolverá o problema crônico da insegurança e da criminalidade. Trata-se de atuar de maneira mais efetiva para promover a segurança pública.
Agir somente no sentido de penalizar não é suficiente para conter a criminalidade. É necessário punir o autor de delito, mas é indispensável também implantar políticas públicas, programas psicossociais e ações assistências que trabalhem com vista a evitar a ocorrência de delitos, impedir a adesão a atividades ilícitas e o recrutamento, principalmente de adolescentes e de jovens, pela economia do crime.
Embora parcela da população confira certo “glamour” à prisão e as distintas mídias explorem as desgraças humanas, sociais, penais em matérias policialescas, convertendo em espetáculo operações que resultem em perseguições, apreensões e prisões, a repressão por si só não é capaz de sinalizar na direção de uma sociedade mais livre, justa e segura. Pelo contrário, mesmo quando a necessária abordagem repressiva atua no combate à violência e à insegurança, ela evidencia, em regra, apenas os “sintomas” de problemas sociais mais profundos. Atento a isso, é preciso evitar cair nas ciladas tanto do punitivismo criminal exacerbado quanto do populismo penal, o qual acaba demagogicamente incorrendo também em práticas fomentam a impunidade.
De outro lado, a espetaculosa e massiva cobertura midiática da atuação repressiva das polícias cria a falsa e efêmera sensação de segurança. Ilusões geradas a partir da manipulação de imagens, de edições desonestas, por vezes comprometidas com promessas eleitoreiras, e do apelativo uso das mídias em ações e operações policiais. Um deplorável faz de conta, cujo efeito concreto na promoção da segurança pública é nenhum, mas que atende apenas aos interesses do marketing de indivíduos, grupos e de instituições.
A realidade prossegue sob a pressão da violência e da criminalidade, comum e organizada, sem que medidas institucionais e sociais eficazes intervenham eficazmente para lidar com os fatores que desencadeiam ondas de assaltos; atentados à vida, à integridade, à liberdade, a bens públicos e privados; tráfico de drogas, de pessoas e de armas; e fomentam estupros, maus-tratos, sequestros, latrocínios, homicídios, graves ameaças, dentre outros eventos delituosos.
A punição dos criminosos é relevante para contribuir na redução da criminalidade, mas enfrentar os fatores que levam indivíduos, grupos e instituições à prática do crime é muito mais eficaz para evitar a expansão de uma cultura da violência e da impunidade.
A pena deve ser imposta a todos que praticarem delitos, não apenas à criminalidade daqueles grupos em situação de maior vulnerabilidade social, especialmente ligados a crimes patrimoniais (furto, roubo, estelionato, apropriação indébita, extorsão…), similares e caracterizados como do pequeno tráfico ilícito de drogas. A responsabilização penal precisa alcançar ainda mais os desvios de recursos públicos, o aparelhamento de bens e de repartições estatais para finalidades diversas das públicas, as fraudes a licitações, a corrupção institucionalizada, os crimes de colarinho branco, a articulação de agentes públicos e privados para operar atividades ilícitas, a associação criminosa e as organizações criminosas, dentre outras práticas.
A violência, a criminalidade, a impunidade tem origem num conjunto de fatores socioeconômicos, políticos, psicosociais, estando muito relacionados à forma de organização e funcionamento da sociedade. A atuação da polícia, do judiciário, dos poderes, das autoridades, seus agentes e auxiliares, pode contribuir muito para inibir a violência, desestimular o crime, desarticular as organizações criminosas e combater a impunidade. Isso demanda qualificação profissional e constante atualização do suporte tecnológico necessário, além do combate à corrupção no interior dos órgãos e das instituições, desligando servidores que tenham envolvimento com o crime (policiais, juízes, promotores, defensores, serventuários, funcionários etc). Além disso, aprimorar o sistema de identificação civil no país e integrar os membros do sistema de justiça criminal, inclusive digitalmente, é essencial no combate à violência e à impunidade.
Punir da maneira adequada e com vistas a reeducar aquele que é sujeitado à penalidade, tanto de restrição de liberdade quanto de direitos, é fundamental para obter resultados favoráveis no campo da redução da criminalidade. Lastimavelmente, os presídios brasileiros não oportunizam a adequada punição muito menos ressocialização aos presos. Os onerosos estabelecimentos penais do país são paradigmas de como não se deve punir nem gerir massas humanas encarceradas, pois funcionam de modo a potencializar o grau de periculosidade dos internos. Não basta punir de qualquer jeito, é preciso combater a impunidade de modo adequado.
O enfrentamento à impunidade deve se dar na convivência humana ordinária, de maneira proporcional à fase de desenvolvimento humano, a fim de que se permita aprender com clareza a relação entre os valores humanos e sociais, a conduta e suas consequências, com vistas a desenvolver o discernimento, o senso de cooperação e responsabilidade individual e social.
Nesse sentido, pais ou responsáveis devem educar, disciplinar, pôr limites e, quando necessário, punir de forma humanizada e adequada seus filhos e aqueles que estão sob sua responsabilidade quando cometerem faltas éticas ou praticarem condutas que tendem à violência, ao preconceito, a abusos e a erros diversos. As escolas e outras instituições devem procurar atuar da mesma forma. Fazer “vistas grossas” às faltas, “passar a mão” nos erros ou abusos, relevar o mal feito, ignorar a conduta antiética e omitir-se de educar, orientar, disciplinar e punir é venal à própria pessoa que pratica tais atitudes antiéticas ou danosas, além de ser nocivo a todos os membros da sociedade. A impunidade deve ser combatida na rotina da convivência, de modo justo e humano, a começar da própria família, sobretudo pela via do diálogo, da orientação, do exemplo, do entendimento e da educação para a liberdade, a dignidade humana e a cidadania. Estes não são apenas princípios e valores abstratos, mas condição para a vida em sociedade.
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