Ainda não se sabe exatamente qual a finalidade, mas, há denúncias de mães venezuelanas, que estariam sendo assediadas para vender bebês em Roraima e provas flagrantes de suspeitos de integrar quadrilha que raptava crianças suficientes para se afirmar que o tráfico de crianças, de maneira especial de crianças filhas de migrantes dada a sua vulnerabilidade social, é uma realidade que precisa ser seriamente denunciada e investigada na Amazônia.
Este tema vem ganhando importância internacional e atualmente é tema de debate no Sínodo da Amazônia. Dada a sua relevância e os perigos para toda sociedade, a temática é apresentada no Instrumentum Laboris, Documento de Trabalho do sínodo disponível no link , que apresenta uma grande preocupação nos parágrafos 15, 23, 67, 73, e nas sugestões apresentadas ao final do parágrafo 128.
Há mais de vinte anos estudo e publico com certa periodicidade, pesquisas e artigos sobre o tema do tráfico de pessoas na Amazônia e tenho aprofundado argumentos suficientes para concordar de que realmente, trata-se de uma grave violação dos direitos humanos e, de maneira especial, uma das mais perversas violências contra as mulheres que aparecem como principais vítimas deste delito internacional.
Entretanto, a incidência de tráfico de crianças, tem despertado a atenção e novos estudos dos diversos grupos que atuam com esta temática, tanto no âmbito acadêmico como é o caso do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos – GEIFRON, vinculado ao programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima e a Rede “Um Grito pela Vida” instituição vinculada à Conferência dos religiosas/os do Brasil – CRB.
Nas últimas semanas, mediante as denúncias que chegaram a pública pelas matérias acima mencionadas, saímos a campo para ouvir os migrantes venezuelanos em Boa Vista sobre este assunto. As pesquisas de campo fazem parte do Projeto de Pesquisa, intitulado Migração, Violência e Direitos Humanos: uma análise dos processos migratórios no Estado de Roraima,aprovado pelo CNPq, no Edital MCTIC/CNPq Nº 28/2018.
Nas conversas com os migrantes, confirmamos tanto a atuação de quadrilhas especializadas no aliciamento e tráfico de mulheres para fins de exploração sexual comercial, quanto de crianças. Não conseguimos falar com nenhuma família envolvida diretamente com o crime, mas, entre os migrantes, são recorrentes as narrativas que dão conta de vários grupos atuando em Boa Vista e cabe às instituições responsáveis fazerem as investigações.
Aqui neste artigo, reproduzimos apenas algumas narrativas que dão conta de ampla atuação de grupos que “levam as crianças para destinos desconhecidos”. Uma parente informa que uma menininha de apenas 5 anos estava sendo “negociada” na imediações da rodoviária de Boa Vista, com um “caminhoneiro que afirmava ser de São Paulo e que precisava realizar o desejo da esposa pela maternidade”. De acordo com as narrativas, a mãe teria desconfiado da versão do caminhoneiro quando o avistou fazendo a mesma proposta para outra mãe com outra criancinha de apenas 4 anos. Diante dos fatos, a mãe ficou observando o caminhoneiro e ouviu quando este colocou no viva voz um áudio de watsapp no qual uma voz masculina dizia que poderia pagar até dois mil por cada menina que levaria para a “farra” em São Paulo.
Assustada a mãe teria fugido com a criança para Manaus. Cabe às autoridades policiais apurar os fatos e fazer as investigações. O que pontuamos aqui neste artigo é a gravidade deste delito e sua recorrência neste contexto migratório de extrema vulnerabilidade social e econômica das famílias assediadas por traficantes capazes de “comprar crianças”. Ao que tudo indica pode se tratar de grupos pedófilos especializados em abuso e exploração sexual de crianças. No entanto, pode ser também para tráfico de órgãos. Ou seja, para bons propósitos não será. Se fosse para adoção, temos o cadastro nacional de adoção vinculado ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça) com amplo e fácil acesso para todos os interessados em adotar de forma legal.
O que podemos afirmar nestes poucos dias de estudos científicos é que se trata de um crime marcado pela covardia de adultos que banalizam a condição humana de crianças pelo simples fato de serem pobres e estarem em situação vulnerável. Trata-se de tráfico humano porque cumpre todas as suas prerrogativas conceituais previstas no artigo terceiro do Decreto Nº 5.017, de 12 de março de 2004 do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças que afirma o seguinte: “Tráfico de pessoas significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.
A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos; o consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a); o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados “tráfico de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea a) do presente Artigo; o termo “criança” significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos”.
Neste mês de agosto dedicado à “campanha coração azul” de prevenção ao tráfico humano, cabe à sociedade estar alerta diante destes fatos e, diante de qualquer suspeita, não ter medo de denunciar às autoridades competentes para que se possam investigar os fatos.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial do AMAZONAS ATUAL.