A CPT (Comissão Pastoral da Terra), organismo ligado à CNBB (Conferência dos Bispos do Brasil), está lançando em diversos estados e municípios, a 33ª edição do relatório anual “Conflitos no Campo Brasil 2018”. Trata-se de um documento importante para avaliar as tensões e conflitos ao redor da questão agrária no Brasil.
O texto conta com importantes análises professor Carlos Walter Porto-Gonçalves da UFF (Universidade Federal Fluminense), baseadas no roteiro do filme ‘Terra em Transe’, filme de Glauber Rocha, lançado em 1967.
Destacamos alguns trechos da apresentação do relatório para um maior esclarecimento sobre o atual contexto dos conflitos agrários no Brasil e, de modo especial, na Amazônia que aparece no relatório como a região mais impactada nos conflitos e mortes no campo em 2018.
Baseado no roteiro do filme ‘Terra em Transe’, destacam-se os seguintes recortes:
- O país da ruptura política, 2015/2018 – entre o impedimento da presidenta Dilma e a eleição do capitão Bolsonaro –, se parece muito com aquele do polêmico filme vanguardista de 1967: populistas, fundamentalistas religiosos no governo resultado de um golpe de estado; corrupção sem limites nas relações das classes dirigentes entre si e com empresários transnacionais, a despeito, no caso presente, da seletiva e instrumentalizada operação ‘Lava Jato’ de “combate à corrupção”; povo desmobilizado, enganado pelas versões da mídia que distorcem os fatos, hoje potencializadas pelas chamadas “redes sociais” e suas ‘fake news’; oposição de esquerda sem rumo, afeita ao Estado mais que às ruas… Mas, o achado da recorrência está também no transe que este estado de coisas provoca na terra, literalmente: aumento exacerbado de todas as formas da violência no campo (e, correlata, nas periferias urbanas), sobretudo contra povos e comunidades tradicionais, visando seus territórios ricos em bens naturais (almejadas commodities) sob controle deles, intencionalmente precário do ponto de vista jurídico.
- Territórios: justo aqueles que significam e preservam o “país do pau-brasil”, mas não escapam da predação extrativista e da colonialidade reinventadas, o patrimônio nacional vendido na bacia das almas, os danos de toda ordem, irreversíveis. Ademais, o país todo vive em transe, se não o mundo inteiro! Soberano no mundo, o capital financeiro busca se territorializar como solução para a crise por ele mesmo engendrada, a fim de estender o processo atual de acumulação ilimitada de riqueza fictícia. Países ricos em recursos naturais como o nosso não escapam a esta sanha devoradora de terra e gente. A violência é sua tática eficiente, agora com outro tipo de respaldo do Estado que, sob Bolsonaro, criminalizadas são as vítimas: “são todos terroristas”, disse ele sobre os militantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto). Foi didático: no campo e na cidade, a terra está entregue à especulação sem freios.
- O que se deve esperar de 2019 e anos seguintes, se órgãos e funções estratégicas para evitar e dirimir conflitos no campo, como Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), Funai (Fundação Nacional do Índio) e Ouvidoria Agrária, estão sendo entregues a militares? Quantidades e extensões do transe. Os números justificam o transe da terra. Os conflitos no campo (terra, água, trabalho, em tempos de seca, garimpo, sindicais e violências contra a pessoa – assassinatos, ameaças, agressões, prisões etc.) aumentaram em 4% em relação a 2017, passando de 1.431 para 1.489. Destes, 1.124 foram por terra. Perto de um milhão de pessoas foram envolvidas no total dos conflitos, 36% a mais que em 2017, 51,6% na região Norte. Aí também a concentração de terras em conflito: 92% do total em 2018. Outros índices alarmantes confirmarão a Amazônia como foco principal.
- A extensão de terras em conflito vem aumentando exponencialmente desde 2015 (foram 8.1 milhões de hectares em 2014), passando de 21,3 milhões de hectares para 23,6 milhões em 2016, 37,0 milhões em 2017 e 39,4 milhões em 2018, o que significa 4,6% do território nacional em disputa.
- Os conflitos por água, que vêm crescendo desde 2002, quando a CPT (Comissão Pastoral da Terra) passou a registrá-los separadamente, teve um aumento exponencial em 2018 em relação a 2017: de 197, envolvendo 35,4 mil pessoas, para 276, envolvendo 73,6 mil pessoas – um aumento de 40,1%. Ribeirinhos e pescadores foram as vítimas preferenciais: 80,5%. Metade destes conflitos foram causados por mineradoras. A saga inglória do rio Doce se estendeu por 2018 e seguirá para sempre. A Vale de lá originada voltará ainda mais terrível em 2019 com Brumadinho e deverá continuar, pelo tanto de barragens de rejeitos tóxicos que deverá quebrar e valerá a pena fazê-lo, impunemente.
- Os conflitos trabalhistas também aumentaram, sobretudo as ocorrências de trabalho escravo, outra evidência do avanço avassalador das políticas neoliberais, com as flexibilizações na legislação já impostas: de 66 casos, envolvendo 530 pessoas, em 2017, para 86, envolvendo 1.465 pessoas, em 2018.
Estes e outros recortes podem ser lidos na sua íntegra no relatório completo disponível no site da CPT.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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