Estranho tempo esse de sofisticados recursos tecnológicos e avançadas técnicas de
comunicação, engenharia, administração, medicina e outras áreas, em que ainda é necessário
combater o trabalho escravo. Institucionalizou-se um dia nacional para lembrar a necessidade
de combater permanentemente essa criminosa prática que insiste em perdurar.
O dia 28 de janeiro é dedicado à causa da memória do combate ao trabalho escravo no
Brasil, pois foi na data de 28 de janeiro de 2004 que auditores fiscais do trabalho (Erástones
de Almeida, João Soares Lage e Nelson José) e o motorista que os conduzia (Ailton Pereira de
Oliveira) foram assassinados enquanto vistoriavam fazendas na zona rural de Unaí-MG.
O trabalho escravo ou trabalho análogo ao de escravo é caracterizado pelos seguintes
elementos, os quais podem ocorrer de modo isolado ou conjuntamente: I) condições
degradantes de trabalho: condições incompatíveis com a dignidade humana, o que é
configurado mediante a violação de direitos fundamentais que coloquem em risco a saúde e a
vida do trabalhador; II) jornada exaustiva: na qual o trabalhador é submetido a esforço
excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida; III)
trabalho forçado: manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico,
ameaças e violências físicas e psicológicas; e IV) servidão por dívida: fazer o trabalhador
contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele. São essas as características da chamada
redução à condição análoga a de escravo, na forma do art. 149 do Código Penal brasileiro.
A ocorrência do trabalho escravo tem prevalecido em certos interiores ou sertões do
país, em áreas mais distantes da presença do Estado. Isso não quer dizer que o trabalho
escravo se restrinja à área rural. Ele também ocorre em área urbana, sendo mais frequente na
construção civil e na indústria têxtil, por vezes envolvendo imigrantes estrangeiros. Essa
grave situação demonstra o quanto é preciso humanizar as relações sociais e os modelos
econômicos existentes.
Europeus (ingleses, portugueses, espanhóis, holandeses, franceses) fizeram do tráfico
de escravos, durante muito tempo, um lucrativo negócio, do qual os africanos e brasileiros
também participaram. Com o advento do trabalho assalariado, inerente ao modo de produção
capitalista tipicamente industrial, o trabalho escravo deixou de ser atrativo. Aos poucos, foi
sendo abandonado, mais infelizmente ainda subsiste em menor escala.
Países como a poderosa China e a emergente Índia são também conhecidos pelas
condições precárias, aviltantes e sub-humanas a que submetem seus trabalhadores. São
consideradas economias que admitem práticas de exploração não racionais ou incivilizadas de
trabalho e constituem antimodelos econômicos. Tais práticas violam frontalmente disposições
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre as condições de trabalho, os direitos
do trabalhador e a proteção social. O cenário geral de crise e encolhimento de economias
nacionais acaba se constituindo fator de pressão sobre as já precarizadas relações de trabalho.
Os EUA, a Europa e, de uma forma geral, o Ocidente estão cada vez mais se
debatendo e pagando o alto preço por terem reconhecido muito precocemente a China como
economia de mercado, sem ter dela exigido uma adequação básica ou suficiente às leis e
práticas trabalhistas, previdenciárias e socioambientalmente responsáveis já operadas nas
principais economias ocidentais. Resultado: a selvagem competição nos mercados globais está
nivelando por baixo as relações trabalhistas e os direitos sociais antes garantidos aos
trabalhadores e cidadãos das principais protagonistas econômicos do Ocidente.
Em diversos países, como no Brasil, direitos sociais, previdenciários e ambientais
estão seriamente ameaçados por correntes mercadocêntricas insensíveis à justiça social e
intolerantes aos direitos da sociobiodiversidade. Essa tendência se fortaleceu num contexto de
recrudescimento de correntes ultraconservadoras e de extrema direita logospirata, por vezes
xenófoba e racista, religiosamente apegada ao cego culto ao fundamentalismo econômico.
Modelos voltados para reduzir as desigualdades sociais e regionais (objetivo previsto na
Constituição da República – art.3°, III), visando estimular oportunidades de trabalho lícito e
proteger o meio ambiente, como a Zona Franca de Manaus (ZFM), passaram a ser vistos pelo
atual governo central como mero privilégio fiscal. Uma visão de governança socioambiental
extremamente limitada, sob todos os aspectos, com reflexos sobre as perspectivas do mercado
de trabalho na região amazônica.
Não obstante a proteção jurídica às relações de trabalho, ao meio ambiente, à floresta
amazônica e à ZFM constarem expressamente em leis positivadas pelo parlamento, desde a
Constituição, não é de hoje que o fato de estar na lei seja garantia de alguma efetividade num
país de formalismo jurídico como o Brasil. É de uma ingenuidade ímpar ou acrítica supor que
o fato de ser ter as algumas das melhores do mundo no ordenamento brasileiro, sobre alguns
assuntos até mesmo de grande relevância, signifique que alguma coisa esteja realmente
assegurada ou que o cidadão comum disponha de meios e instrumentos eficazes para lutar
contra a burocracia que o impede de exercer o direito a que faz jus. Há um aspecto
extremamente figurativo no processo democrático brasileiro, certo “faz de conta”, inclusive
com discurso de mudança que concretamente nada de importante consegue alterar, que vem
impedindo há décadas a efetiva consolidação das perspectivas democráticas do país.
Ao lado desse cenário institucional desalentador, deve-se levar em conta processos
ilícitos ou ilegalismos globais, tais como o tráfico de pessoas, que se destinam ao
atendimento, dentre outras torpezas, de diferentes tipos de escravidão humana.
A OIT estimou, em 2015, que ainda existiriam pelo menos 27 milhões de pessoas
(homens, mulheres e crianças), escravos e escravas, em todo o mundo, sendo sujeitadas a
condições de trabalho forçado e controladas mediante processos violentos, fraudulentos e de
algum modo viciados.
No Brasil, apesar do tráfico negreiro haver sido proibido (Lei Eusébio de Queiroz,
1850) e a escravidão abolida (Lei Áurea, 1888), anualmente, equipes formadas de auditores
fiscais do trabalho, procuradores do trabalho e policiais, dentre outras instituições, libertam
milhares de seres humanos do trabalho escravo ou reduzidos à condição análoga à de escravo.
Segundo dados do Ministério do Trabalho, entre 1994 e 2014, foram libertos 47.902
trabalhadores. Em média, mais de dois mil por ano.
A luta organizada contra o trabalho forçado ou análogo ao de escravo remonta os anos
70 do século passado, quando as denúncias de Dom Pedro Casaldáliga e da Comissão Pastoral
da Terra (CPT), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, chegaram
à ONU, via OIT (Organização Internacional do Trabalho). Próxima terça-feira, 28.01.2020,
será mais uma ocasião de conhecer os novos números dessa verdadeira luta contra a injustiça
social e a barbárie no Brasil.
Não bastasse ter sido o país em que maior tempo durou a escravidão (quase quatro
séculos), considerado por muitos um holocausto negro, o Brasil ainda ostenta números
preocupantes quanto à realidade do mundo do trabalho, sendo imprescindível o movimento de
combate ao trabalho escravo. Especialmente em tempos de crise e precarização das relações
de trabalho, a persistente atenção deve ser redobrada.
Embora não sirva de justificativa ou de desculpa, a instabilidade econômica, política e institucional impacta sobremaneira a ordem social e cria contextos críticos favoráveis a certas espécies de espoliação econômica, violações a direitos trabalhistas e previdenciários.
Por essas razões, a defesa da dignidade humana nas relações de trabalho requer
necessariamente o respeito e a proteção dos direitos sociais dos trabalhadores, apesar das
pressões e crises do modelo econômico em curso com a atual dinâmica dos mercados. Um
modelo que privilegia a acumulação financeira sem base na economia real, que produz
pouquíssimos ricos sem produzir riquezas.
Enfim, a defesa das condições dignas de trabalho humano e sua justa compensação
passa necessariamente pelo combate ao trabalho forçado, pelo combate a redução à condição
análoga a de escravo, pelo combate ao tráfico de pessoas, pelo combate à corrupção
institucionalizada nas relações trabalhistas e de mercado. Seria bem melhor se não precisasse
existir, mas lamentavelmente é necessário lembrar o Dia Nacional do Combate ao Trabalho
Escravo.
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