Por Eduardo Sodré, da Folhapress
SÃO PAULO – O passado distante bate à porta do setor automotivo. A tempestade perfeita causada pela pandemia do novo coronavírus – somada à crise política – derrubou a produção de veículos em abril. Os números regrediram a níveis registrados em 1957, primeiro ano cheio de uma indústria que surgiu com o Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek.
Apenas 1.800 unidades foram fabricadas no país no mês passado, segundo a Anfavea (entidade que representa as montadoras instaladas no Brasil). A produção de veículos caiu 99,4% em relação a abril de 2019 e 99% na comparação com março. No acumulado do ano, a queda é de 39,1%.
Assim como ocorreu nos anos 1950, a solução para fortalecer a cadeia automobilística deve passar pelo incentivo à produção local, uma forma de preservar empregos e melhorar a rentabilidade diante da alta do dólar.
“A localização é uma questão crítica para reduzir a exposição ao câmbio, temos focado nisso já há algum tempo. Mas, claramente, os níveis atuais ainda deixam uma grande parte do nosso negócio exposta, o real tem sido uma das moedas com pior desempenho de todos os mercados emergentes”, diz Carlos Zarlenga, presidente da General Motors América do Sul.
O executivo lembra que a moeda acumula uma desvalorização de quase 40% desde janeiro de 2020. “Isso afeta drasticamente a lucratividade da indústria e da GM. A maioria das empresas de automóveis está perdendo dinheiro, e o colapso extraordinário do real faz esse cenário ficar insustentável.”
A Anfavea tem conversado com a equipe econômica sobre suas demandas específicas, mas se preocupa com as turbulências no governo em seguidos embates com os poderes Judiciário e Legislativo. As pautas mais importantes que envolvem estímulos à indústria por meio de benefícios fiscais precisam passar pelo Congresso.
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“Quanto mais barulho em Brasília, mais problemas teremos com a economia”, afirma Luiz Carlos Moraes, presidente da Anfavea.
Sobre o processo de nacionalizar componentes, Moraes explica que sempre será necessário importar algumas tecnologias e peças de menor volume. Há também o problema dos prazos de desenvolvimento e homologação: equipamentos de segurança, por exemplo, levam cerca de 24 meses para serem desenvolvidos e aplicados nos automóveis.
Por outro lado, há muitos outros itens que podem voltar a ser manufaturados no Brasil, pois migraram para o exterior apenas por questões de custo. Essa reversão, além de contornar o problema do câmbio, será importante para manter a indústria ativa em um ambiente de redução das vendas e de baixa atratividade para disputar contratos.
De acordo com a Anfavea, haverá aumento da competitividade entre as subsidiárias. As vendas globais devem cair 22% em 2020 e levar a uma ociosidade de 30% na indústria automotiva mundial. Com isso, as nações que têm fábricas instaladas devem se tornar mais agressivas na busca por investimentos das matrizes, que também procuram fortalecer as linhas de produção em seus países-sede.
“A globalização está sendo rediscutida. O Japão puxou 200 empresas de volta da China, EUA e Alemanha aceleram esse processo, há uma proteção muito maior no setor”, diz Paulo Cardamone, da Bright Consulting.
O Brasil entra em desvantagem nessa disputa e enfrenta uma ociosidade bem acima da média: com as previsões indicando queda nas vendas entre 25% e 40% neste ano, a ociosidade do setor deve ultrapassar os 60%, o que pode levar a demissões.
E mais uma vez surgem as semelhanças com os anos 1950. Naquela época, o estímulo à produção visava atender a um público consumidor que nascia junto com a indústria e, por consequência, gerar empregos. Todo o foco estava no mercado interno, como deve ocorrer neste momento.
Além disso, produzir no Brasil significa evitar uma explosão de preços que, pelos cálculos da Bright, podem resultar em aumentos acumulados de até 17% ao longo do ano. Isso afugentaria compradores que já estão assustados.
Esse público é fundamental para a saúde das empresas. As vendas diretas a frotistas, que são menos rentáveis, começam a despencar. As locadoras passam por um movimento inverso, recebendo de volta milhares de carros que estavam sendo usados por motoristas de aplicativos. Com a redução das corridas, eles não têm condição de pagar o aluguel.
Zarlenga afirma que, no cenário atual, os repasses são a única solução de curto prazo. Nesta semana, a GM aumentou em 4% os valores sugeridos para seus carros. “E é apenas o começo se a moeda permanecer nesses níveis sem precedentes. Nós continuaremos aumentando os preços significativamente, mesmo em um mercado menor”, diz o executivo.
O presidente da GM afirma que a indústria no Brasil não é lucrativa e não tem sido já há algum tempo. “Os preços dos carros no Brasil são compostos por mais de 40% de impostos contra 7% em outros países, o que é a principal razão pela qual os carros são caros aqui”.
A Ford também avalia investir na produção regional de componentes para reduzir custos e driblar o dólar. “No mundo ideal, nós buscaríamos comprar e produzir onde vendemos, mas muitos fatores como investimento, escala, exposição cambial, custos de logística e impostos precisam ser considerados”, diz Lyle Watters, presidente da montadora americana na América do Sul.
Segundo Antonio Filosa, presidente do grupo FCA Fiat Chrysler América Latina, há um trabalho para atrair novas fábricas de componentes e de tecnologias que poderiam atuar na região.
“Há muitas conversas em andamento e este é um investimento que tem um ciclo de médio prazo, mas a atual situação global de mercado torna a execução desta estratégia mais complexa, porque também impacta o caixa destas empresas”, afirma Filosa.
Todos esses movimentos convergem para um plano de estímulo à indústria, que deve ser bem diferente das ações de incentivo ao consumo que foram comuns nos primeiros 15 anos desde século.
Esse é mais um dos pontos que remetem a 1957 e também a outros momentos da história nacional em que a indústria automotiva nacional recebeu ajuda – algumas polêmicas, como a sobretaxa aos carros importados imposta em 2011, que levou à criação do programa Inovar-Auto.
Mas antes de propor qualquer plano de incentivo, a Anfavea corre atrás de crédito para manter as empresas saudáveis. Uma das propostas apresentadas sugere usar os créditos retidos do ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) como garantia de empréstimos bancários. A entidade afirma que o valor acumulado tanto no âmbito federal quanto nos estados chega a R$ 25 bilhões.
Enquanto montadoras e governo discutem se a solução para o futuro das fábricas está nas estratégias do passado, o setor de peças, que emprega 248 mil trabalhadores, aguarda.
“Acompanhamos o ritmo de produção das montadoras, nosso principal segmento de mercado. O setor é muito resiliente e trabalha para atravessar essa crise, da mesmo forma que o fez entre 2014 e 2016, quando tivemos quedas expressivas de volumes por um longo período de tempo”, diz Dan Ioschpe, presidente do Sindipeças.
O executivo acredita que o caráter temporal da crise causada pela pandemia do novo coronavírus oferece uma condição mais extrema no curto prazo, mas com uma retomada mais rápida. Contudo, segundo Ioschpe, “isso não significa dizer que diversas empresas do setor não terão problemas enormes e, talvez, algumas não sobrevivam.”
Quanto ao movimento de nacionalização, o presidente do Sindipeças avalia que será necessário haver competitividade a longo prazo e não apenas uma reação pontual. “Isso envolve trabalho árduo de redução do custo sistêmico local, o chamado ‘custo Brasil’”.
Cenário frágil
A divulgação do tombo do setor automotivo ocorre na mesma semana em que foram anunciados dados indicando retração de 9% na indústria, em março, e deflação em abril, o que aponta um cenário econômico cada vez mais frágil.
Para o pesquisador Samuel Pessôa, colunista da Folha e pesquisador do Ibre/FGV, o crescimento do ano foi comprometido. “A recessão já está contratada, basta esperar”, diz Pessoa.
Segundo o Codace, comitê que marca os ciclos econômicos, do Ibre/FGV, há recessão quando ocorre, em ao menos dois trimestres seguidos, declínio expressivo na produção de diversos setores simultaneamente. O comitê analisa uma série de indicadores para avaliar se o país está em recessão, entre eles, o PIB. Claudio Considera, também do Ibre/FGV, diz que é cedo para falar em recessão.
Não há definição fechada para depressão. Em seu “Dicionário de Economia do Século 21”, Paulo Sandroni a define como “fase do ciclo econômico em que a produção entra em declínio acentuado, gerando queda nos lucros, perda do poder aquisitivo da população e desemprego” – elementos bem presentes atualmente.