O Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS) acabe de divulgar os índices mais recentes do saneamento básico do Brasil, expondo o desempenho dos municípios no ano de 2018. Mais uma vez a sociedade brasileira se depara com a omissão dos poderes públicos e a lamentável situação dos serviços essenciais garantidos formalmente na Constituição brasileira.
Entre as regiões administrativas, o Norte e o Nordeste são as mais atrasadas no que diz respeito à oferta do saneamento básico para as suas populações. No ranking das 100 maiores cidades brasileiras, o grupo das 10 piores tem uma presença marcante da região Norte (6 cidades), destacando-se a cidade de Manaus/AM.
O saneamento de Manaus destaca-se na lista dos 10 piores porque trata-se de uma concessão privada, que tem como justificativa o discurso da eficiência dos serviços. De fato, no ano 2000, a privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário de Manaus foi realizada argumentando-se que a empresa privada teria um melhor desempenho em comparação com a empresa pública que realizava os serviços na época. O histórico do desempenho ao longo do período de privatização mostra, no entanto, que a eficiência da concessão privada não passa de um discurso enganador.
Durante as duas últimas décadas de privatização, a cidade tem amargado os últimos lugares entre as capitais brasileiras no que diz respeito ao saneamento básico. Isto é visível na ausência ou precariedade dos serviços realizados nas periferias da cidade, onde habitam as populações mais pobres a quem a empresa não tem interesse em servir. Enquanto isso, a concessionária Águas de Manaus encontra o seu público predileto nas zonas mais ricas da cidade, onde o seu lucro é assegurado.
Os órgãos de defesa do consumidor são unânimes em constatar o baixo desempenho dos serviços de água e esgoto de Manaus, confirmando os índices do Sistema Nacional de Informação sobre o Saneamento (SNIS-2018). Se de um lado, o Programa Estadual de Proteção e Orientação do Consumidor (Procon-AM) revela que “Amazonas Energia e Águas de Manaus lideram o ranking de reclamações em 2019” (Portal Acritica, 25 de dezembro de 2019), do outro lado, a Agência Reguladora dos Serviços Públicos Delegados do Município de Manaus (Ageman) mostra que “a falta de água é a principal reclamação dos manauaras” (Porta do Holanda, 31 de dezembro de 2019).
A situação dos serviços de esgotamento sanitário é alarmante em Manaus. Durante 20 anos de concessão privada, a expansão destes serviços não passa de 12,43% da cidade, colocando a maioria da população em estado de vulnerabilidade sanitária e promovendo a poluição dos igarapés e rios locais. Os investidores da empresa, por não morarem na região, ignoram propositalmente esta situação. Eles não se interessam pelas pessoas, mas visam unicamente o retorno do seu investimento. Por isso investiram e querem o máximo de lucro possível.
Neste contexto, o Estado e as Leis se adaptam aos interesses das empresas. Isso pode ser visto não somente nas alterações das regras através dos inúmeros Aditivos ao contrato de concessão, mas também na fragrante negação da tarifa social aos mais pobres. Este subsídio, que deveria beneficiar 130 mil famílias, é concedido somente a 26 mil núcleos familiares da cidade, segundo os novos dados do Sistema Nacional de Informação sobre o Saneamento.
Este processo de exclusão social confirma as investigações de David Harvey, ao mostrar que grande parte da humanidade já se tornou redundante e descartável. Para este estudioso, o capital nunca hesitou em destruir as pessoas quando se trata de lucrar. O mercado ignora as pessoas, quando estas não correspondem aos seus interesses. Na sua perspectiva, não há direitos humanos, biodiversidade ou diversidade cultural, a não ser que estes sejam transformados em mercadorias em beneficio do processo de acumulação capitalista.
Quanto mais a sociedade avança no processo de mercantilização absorvendo todas as coisas e dimensões da vida, mais é internalizada a lógica mercantil, tornando-se normal a exclusão daqueles que não conseguem operar no circulo do mercado. A imposição da forma-mercadoria no mundo natural não é só esquisita, mas inerentemente destrutiva, vai muito além da ideia de que as forças e potências naturais são abaladas e destruídas até se tornarem inúteis para o capital. O que se destrói é nossa capacidade de sermos humanos de qualquer outra forma que não seja aquela exigida e ditada pelo capital (David Harvey, 2014).
A crescente retomada dos serviços de água e esgoto pelo Estado ao longo do mundo sugere o fracasso das privatizações e o despertar da consciência de que é necessário impor limites ao capital. Estão plantadas as sementes de uma revolta humanista contra a inumanidade pressuposta na redução da natureza e da natureza humana à pura forma-mercadoria. Trata-se de um espírito de revolta no qual palavras como dignidade, respeito, compaixão, cuidado e afeto se tornam slogans revolucionários, e valores como verdade e beleza substituem os cálculos frios da lógica mercantil.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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Corretíssimo…